Abraçava-se a mulher, abraçava-a o escuro véu lançado aos seus pés descalços, como se a quisesse proteger da lua, como se a quisesse devolver ao mar. Aqui - disse baixinho a voz tão clara - como convém aos mortais, tudo é divino. São frias as águas, sim, e opacas, tão negro o corpo enorme dos anjos. Foi este então o meu Natal.
Ribeira: contigo soube o mistério da apresentação das coisas.
Como que dá a impressão que por trás
de todas as coisas há um abismo.
A estrita apresentação duma cadeira na varanda, tal toda assim
brotando do nada, porque não é eterna - quero dizer,
aquele momento não esteve sempre ali.
E por extensão, nós próprios, imersos
naquilo que não somos, e que é vasto
como o silêncio em que se ouvem os sons,
nós próprios aqui com os nossos pequenos momentos
que se sucedem extinguindo-se em réstias de imaginação.
E, um pouco estranhamente, é como se intuíssemos
que nesse nada de nós, a que não temos
contacto nem acesso, pode haver algo, e que não é como as coisas,
as nossas coisas - pois é precisamente esse o motivo
da sua inacessibilidade e ausência. Ainda não é o divino,
mas tão só um estertor provocado pelo conceito vazio
da ausência de nós próprios, e que nos é imposto
pressupor, sabe-se lá por que obscura intuição.
Algo de irrepresentável, tal como a cadeira
quando não está lá ninguém para olhá-la.
Como é que é uma cadeira não vista? Pois é o halo escuro
da cadeira não vista que a envolve, à cadeira vista,
tal capa de negação, que nos interroga e assusta
e abala. É por isso que as cadeiras gritam, e certos
pintores as pintam.Enfim, o terror deve vir logo
ao primeiro raio de presença.
Muito antes da apresentação das coisas.
(Vitor Mácula, comentário na RibeiraNegra, 5.1.2006)
E agora continuo eu, embora devêssemos talvez ficar calados.
Por trás de todas as coisas há um abismo. Se o tentarmos olhar descobrimos que só o facho negro o ilumina, como o facho do anjo ruivo na pintura belíssima de Evelyn de Morgan. E descobrimos que há coisas que nos gritam sim. Como se a nossa ausência fosse o que há de mais presente em nós. Como se vivêssemos sempre na cadeira frágil da varanda, no quarto lunar à espera que o dono da casa regresse. Somos os pés descalços de alguém que dança velado. Somos as filhas abandonadas, na janela aberta para a noite maior. Há sempre ao lado uma cadeira vazia, mas sabemos que nela só se virá sentar o anjo negro. E há a luz ardida, tão pequena.
Antes sim, muito antes da apresentação das coisas há esta coisa terrível que é talvez a luz que ilumina a luz.
[pinturas:
Herói segurando o facho, de Evelyn de Morgan (1850-1919)
As filhas abandonadas, de Augustus Egg]
6 Comments:
acredito que há ainda fachos por arder... olha bem...olha...
é preciso segurar luz para que ela perdure... custa manter o braço alto... custa...
...por vezes perdemos as forças...
deixemos que o efémero perdure... em nós... a imagem sempre...
...e o anjo... ahhh se eu pudesse anjo ser...
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(e abraço, para ti e para a Aquilária, e deixado uma sardinha lá na blogcasa onde nethabito).
excelente parceria: palavras que iluminam outras palavras, imagens que iluminam palavras e em seguida se escondem.
as do vitor parecem ressurgir aqui, vindas de muito longe, trazidas no grande fôlego de uma escrita tão peculiar.
e depois as tuas palavras, goldmundo: livro antigo de leitura lenta, coração e alma. depuradas.
fosse isto a vida: um entrelaçar de altas chamas, murmúrios que se abraçam no silêncio, de infinito a infinito.
como posso gostar tanto de pessoas que não conheço?
que saudades, Gold...
Como sabes escrever com a alma!!!
mas é isto a vida, aquilária. o resto são sempre os enganos da treva. e o primeiro deles é fazer-nos crer que se não distingue da noite maior.
saudades também, confessionário.
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