22.1.06

Calling for angels

Tomem uma coisa pequena: pode ser uma criança de três anos. Ponham-na numa casa grande, tão grande que tem quartos sempre fechados, tem mesmo um quarto onde nunca ninguém entrou. Ponham-na numa casa branca, da cor de tudo o que um dia podia ser. Uma casa sempre cheia de silêncio só pontuado pelas badaladas de um relógio antigo, um relógio inglês de caixa alta a que o avô dá corda de quinze em quinze dias como um ritual de adorar o tempo, um relógio com uma tábua em que estão as assinaturas de crianças que se transformaram no Avô e no Bisavô e no avô do Avô, tão longe. Ponham uma criança numa casa onde há uma gaveta fechada à chave onde se guarda a chave de um armário também fechado onde está uma caixa preta amarrada com cordas onde estão as peças de um xadrez belíssimo, cavalos negros de ébano damas brancas de pau-rosa, uma casa onde há árvores cheias de flores e bancos de pedra e o tronco morto de uma ameixoeira e o cheiro doce da buganvília.

Tomem uma coisa pequena e ponham-na num lugar onde o céu é sempre cinzento, onde em Junho pode chover de manhã à noite todos os dias como se fosse uma tarde de Inverno, onde o vento faz arrancar as telhas dos telhados e onde no céu andam corujas e gaivotas, morcegos e estorninhos, pintarroxos e aviões. Ponham-na num lugar onde se ouvem os sinos da igreja e não se ouve o riso de outras crianças.

Tomem tudo isso, com cuidado porque tudo isso fica tão frágil. E juntem-lhe adultos zangados, a cadeira vermelha de onde o Avô já não se levanta, bengala encastoada a ouro tão inútil. O anel de armas da Avó, a cair dos dedos tão magros. Juntem-lhe a cozinheira que contava histórias de fantasmas, o jardineiro velho com o seu barrete de pano, a lenha a arder reflectida nas pratas polidas, os livros escritos em latim, as flores breves da cerejeira. Agora deixem tudo ficar quieto, deixem os anos passar.

O Avô já foi embora, não é? Sim, passaram os anos e é igual a buganvília e o tronco morto da ameixoeira mas a caixa preta das cordas já não está no mesmo armário (quem assim atraiçoou as coisas?) e é verdade, também não está o Pai, um dia foi-se embora ao volante do carro grande de prata. As mães não deviam chorar. Passaram e é ainda o mesmo céu, já nem sempre dão corda ao relógio tão gasto como gasto anda o jardineiro velho, e a criança cresceu sem se habituar a coisas simples: mais próxima da prateleira com as obras completas de Camilo e os livros em latim (uma geografia, livros de direito, uma história dos romanos, folhas comidas por bichos folhas comidas) do que de outras pessoas. Juntem-lhe uma Revolução (ah, se soubessem agora o que é uma Revolução). E sim, deixem passar mais tempo, não há pressa.

Não aconteceu nada, pois não? Não aconteceu nada de especial à coisa pequena criança frágil, não aconteceu mais nada senão cairem uma a uma as flores da cerejeira. Todos sabemos que os avôs se vão embora um dia, dentro de outra caixa preta tão grande (havia uma gaveta que só tinha chaves de caixões, como se a família as não soubesse esquecer).

E não, não foi isto que me fez a mim, pois não? Não foi isto nem foi a festa dos meus sete anos quando espalharam pétalas de camélia branca à volta da minha cadeira tão alta, nem foi aquela vez aos dezasseis em que pela primeira vez me abraçaram junto ao Douro e me disseram "nem se vê a outra margem. Gosto tanto do nevoeiro, sabes?". Não foi.

Calling for angels sim, porque alguém me deixou a meio e só os anjos me saberiam terminar. Não sei de onde nasci. Não sei o que seria agora se não fosse a buganvília e a coruja de anoitecer. Ficou em mim a infância como se fosse uma cicatriz rasgada, até o meu corpo cresceu como se não tivesse a certeza. Ficaram coisas que parecem flores por colher.

Calling for angels. As coisas que vivo passam tão fundo e tudo está misturado. Nem sei porque estou agora a escrever. Deve ter sido Sintra, deve ter sido tudo o resto que hoje vivi, deve ter sido o mar que parece sempre que vai falar. Passam os dias e deixam-me na pele um bronzeado leve que amanhã já não há-de estar. E eu guardo, guardo. Às vezes chegam coisas a arder. Ai de mim, que sou como as folhas de outono. Calling for angels, mas o meu grito não é tão forte que os traga, não é tão fiel que afugente os anjos cegos. E este terrível fingir a normalidade dos dias, a incomensurável aflição dos dias. Este acordar de pesadelo que é saber que lá fora anda uma coisa enorme a vibrar chamada humanidade, e que vou mergulhar nela como se fosse um deserto de sal, um poço de enxofre. Esta saudade triste das flores.

E sim, sei que andam anjos à minha procura. Talvez o mundo os deixe passar. Tomem uma coisa pequena...

14 Comments:

Blogger musalia said...

um dos textos mais belos que já li. obrigada...

22/1/06 20:28  
Anonymous Anónimo said...

Lindo. Tu és lindo.

22/1/06 23:05  
Blogger maria said...

Belíssimo, obrigada.

Um abraço

23/1/06 10:28  
Blogger aquilária said...

deveria passar por aqui, como tantas vezes faço, e ficar em silêncio. mas a ribeira é, agora, de veludo negro. estremeço.
ontem, 22 de janeiro, foi o dia do meu aniversário. vou guardar este teu texto, como se de um presente se tratasse.

23/1/06 11:13  
Anonymous Anónimo said...

O texto é lindo mas tu também! a coruja e a buganvilia, seriam anjos
que velaram por ti, menino feito homem, e se lá voltasses, os quartos seriam concerteza mais pequenos, e o relógio teria perdido a sua altivez...
Deixa que as memórias te embalem, mas sente o sol que te aquece o rosto.
Um beijo
Clara das mãos esguias

23/1/06 12:04  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro Goldmundo.

Belíssimo e certeiro!

Abusando ainda mais um pouco, desejo-te força e fidelidade.

Abraço.

PS: Parabéns, Aquilária!

23/1/06 12:19  
Blogger Goldmundo said...

parabéns, aquilária... :)

...

23/1/06 13:40  
Blogger maria said...

Ó Aquilária, que melhor sítio para te dar os parabéns de que aqui na caixa de comentários deste post?

Parabéns. Viva a vida. Felicidades.

23/1/06 17:47  
Anonymous Anónimo said...

É esta a história do Rei sem reino?

Saudade.

24/1/06 00:14  
Blogger Lord of Erewhon said...

Quanto mais gritas menos Eles te ouvem.

24/1/06 13:33  
Blogger Lord of Erewhon said...

Parabéns, Aquilária.

24/1/06 13:35  
Blogger katrina a gotika said...

Eu acho que nunca vi uma buganvília e nem sei o que é se visse. E no entanto as histórias de Anne Rice estão cheias de buganvílias... Mas nem sabia que havia cá disso.
Eu nasci no cimento.

25/1/06 02:16  
Blogger Goldmundo said...

Lisboa está cheia de buganvílias, gotika. Uma das mais bonitas nasce em pleno Bairro Alto :)

Árvores-arbustos grandes, tipicamente junto de varandas ou muros, com flores pequenas, lilases, mais ou menso em cachos. Não confundir com glicínias, que são mais portuenses

25/1/06 13:45  
Anonymous Anónimo said...

Eu conheci as buganvílias em Julho... alás já as conhecia sem as conhecer...

26/1/06 12:17  

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