Lembro-me de ser tão novo, e de dizer à minha mãe que Deus se alegrou na noite em que Beethoven escreveu a Quinta. Lembro-me de um dos meus grandes amigos (passou-se isto bem mais tarde) me dizer "não queiras ser o tipo inútil que escreveu coisas bonitas". Lembro-me mal de uns versos de Ezra Pound em que dizia (de uma forma dolorosamente perfeita) deus, se não formos capazes de ser mais que isto toma esta lama que somos e molda outra vez todas as coisas, para que a terra se faça coisa que finalmente seja.
E a minha mãe dizia que provavelmente Deus teve pena nessa noite, pena desse Beethoven surdo que procurava a beleza onde ela não pode andar. Que quis erguer o fundamento dos mundos como se fosse ele coisa dos homens, que essa noite a podia ter passado junto de um pobre ou de um preso, que podia tê-la passado em oração e aí sim Deus daria por isso e lhe daria - por isso - essa coisa estranha que se chama salvação. E o meu amigo dizia-me que mais bonitas que quaisquer palavras seria sempre em mim o manter-me onde Deus queria que eu ficasse, e ele sabia que Deus queria umas coisas e não queria outras e falávamos de um casamento que talvez o não fosse. (Não separe o homem o que Deus uniu). E sempre as coisas me disseram coisas que eu não sabia se eles queriam ver. E chamavam-me sempre, no silêncio da chama maior.
Passou tanto tempo, e ainda não sei onde quer Deus que me fique, não sei que anjo tremeu na noite alemã de Ludwig van. Não sei de que lado estava a verdade na batalha de Azincourt, se alguma obra não é só abismo de babel, tempo perdido. Passou tempo e passaram por mim pobres e presos, anjos de um e do outro lado. Passaram coisas e palavras e homens e bichos. Até eu por mim passei, como se não soubesse com quem falava. E a minha mãe dizia coisas que tenho pena de já não saber.
Todo o tempo é perdição do mundo ou perdição de nós.
Às vezes encontro coisas.
Ainda tenho uma pedrinha que me trouxeram da Noruega, uma outra que me trouxeram da Tailândia, uma em forma de coração negro que o mar de Tavira me emprestou. Ainda tenho o voo de um pombo na manhã cinzenta de Outubro, mão dada ao meu pai junto à Igreja da Trindade no Porto e eu tinha seis anos e não sabia que ia ser operado. Ainda tenho o ramo frágil das buganvílias. Ainda me trago, como se fosse uma coisa que não sei onde possa deixar. Às vezes ouço a Quinta de Beethoven ou essa oração estranha que se chama Dead can Dance. Às vezes escrevo coisas e às vezes, como agora, as dores são mais fortes e quase não posso andar. A vida chama, sim, e é sempre a chama indizível. Por isso não somos mais que um corpo nessa câmara ardente a que chamamos alma. E por isso, às vezes, as coisas que se fazem em nós são sim um anjo a tremer.
E tens razão, meu caro, não nascemos ainda e já adormecidos andamos. Por mim só tenho medo de morrer antes de acordar.
A vida chama, em indizível chama, e não há mais nada nos mundos que o mar de gelo e o mistério dos barcos impossíveis. E os mastros, a cruz dos mastros. Somos uma coisa que não sabemos, herdeiros todos do mundo de antes do princípio. Não há mais nada que Voz e Avós. Não há mais nada. E a noite intacta das coisas pequenas, o grito frágil de Ludwig van como se a noite alemã fosse a noite imensa do albatroz.
Dead can Dance, sim. Aos vivos apenas é dado cantar. Somos talvez as sereias de um impossível deus marinheiro. A vida chama...
[fotografia: Crucifixion, de Andres Serrano]
9 Comments:
Estava agora aqui a ler isto... e tive uma espécie de iluminação... Eu, que sou o luciferário, acabo por ter uma vida de maior equilíbrio e benignidade do que tu e o outro... É caso para dizer: Queres pecar? Queres a luz numa mão e a noite e a carne na outra? Torna-te cristão! JAJAJAJA!!!
P. S. Que o Diabo vos ajude, meus irmãos!:)=
Sieur, benignidade é o quê, não ser culpado nem responsável por mal nenhum?...
A luz na noite e na carne... e por isso se unem as mãos para rezar ;)
Abraço.
PS: não me cites agora o Outro com a mão X não ver o que a mão Y...
Benignidade... é conseguir viver Bem. Chegar a um estado de independência do mundo e de si... O mundano é simples de solucionar... basta um pouco de epicurismo... (Os «Taos», os «Budismos» e os «Yôgas» não me dizem nada.).
Todo o mundo moderno é muito happy-curista, Lorde.
Sieur Bishop.
Mas a mim parece-me que se solucionar o quotidiano com um pouco de epicurismo, a vida reduz-se ao imediato… Os planos existenciais não são estanques nem separados. Não dá para anular transcendências no dia a dia e esperar encontrá-las noutro plano, sazonal ou dominical. Quer dizer, dar dá, mas é como os moinhos do glorioso Quixote...
Epicuro propõe a anulação dos excessos que a mente produz – os desvios ao bem estar corpóreo (propondo uma alimentação medicinal), as sobre-determinações perante os fenómenos (propondo reduzi-los às sensações e organização destas) e as projecções na possibilidade (afirmando que o futuro não nos inclui, e lá se vai o ilusório medo da morte, diz o Epicuro).
Isto implica duas coisas: que a vida está adequada à nossa natureza humana, e que o eu está adequado a esta.
Em mim, ambas as desadequações ocorrem, e de fundo – não vai lá com epicurismos… mas eu já estou evidentemente contaminado pelo cristianismo, e em grau suficiente para duvidar de qualquer cura humana… :)
Eu o que me dava jeito era conseguir executar o epicurismo no mesmo plano de execução do taoismo, budismo... Eh eh, e isto já sou eu a puxar a brasa...
Abraço.
Mestre Gold.
Bem, com "happy-curista" já são duas a caminhar para a imortalidade ;);)
Abraço.
...e então se fôr happy-corista é que é uma alegria pegada.
...são duas, sim, vitor, porque esta é muito boa, mas aquela do adão....tsstssstsss
;-D
Alô, Aquilária.
Eh pá não me referia à do Adão, que essa na sua banalidade, não caminha para a imortalidade... Referia-me à do "God 's a hard job"... ;);)
Abraço.
O «mundo moderno» nada sabe de Epicuro. Não lhe conhecem a filosofia - apenas se tornou pura mania bem pensante vilipendiar o seu pensamento. Começou com os estóicos e o cristianismo completou o que faltava de difamação... não é por acaso que das 300 obras que a tradição lhe atribui... apenas chegassem até nós umas poucas cartas e umas dezenas de fragmentos! Mas o epicurismo em nada é um hedonismo.
Informa-te melhor.
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