29.3.04

Suddenly, last Summer

Por duas ou três vezes vi coisas que caminham na terra e que talvez venham de outro sítio. De duas tenho a certeza: já vi um fantasma e já vi o homem de azul, só não sei se me viram a mim. A terceira foi no princípio do Verão passado.
Tinha ido ao Bairro Alto como quando preciso da noite. Era sábado. Nas ruas havia gente e cores e risos demais e procurei um bar onde não reparassem em mim. E passei a noite comigo.
Quando saí era tarde e as cores tinham ido embora. Andei devagar. Havia nas esquinas um nevoeiro denso e lembrei-me do "Excalibur": o bafo do dragão. Agora era o Bairro e a noite estava acordada. Um gordo vestido de preto com figuras de sangue na roupa. Uma miúda a chorar. Dois namorados desistiam de um charro porque abraçar era mais perto, mas na parede atrás deles havia "fim" em letras de giz. À minha frente ia um grupo animado, riam um riso alto que incomodava. E então passou por nós uma rapariga de preto que andava muito depressa e no silêncio em que passou não a pude ver bem, só uma saia comprida e botas e nas costas um xaile grande ou um manto enrolado. Mas tive a certeza de um pescoço delgado e qualquer coisa de prata e lembrei-me dos versos da Sophia:

Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos...


"Gótica", pensei. "É igual à noite, ou talvez seja a noite que é igual a ela". E tive vontade de que ela se não afastasse muito. Parecia feita de tinta da china que o nevoeiro tivesse esborratado. O grupo animado entrou num carro e eu fugi da música que puseram e andei mais depressa, e era bom porque estava cansado mas assim ia chegar a casa mais rápido e já não havia ninguém entre mim e a rapariga de tinta da china.
Eu sempre andei muito, os meus passos são sempre largos e por isso é fácil andar depressa. Mas não me estava a aproximar. Ela ia já muito longe, quase a chegar à Rua do Carmo.
Concentrei-me nela como se estivesse numa caçada. E ela andou como se a distância fosse precisa. Quando cheguei aos Restauradores já tinha atravessado a praça toda e estava a subir a Avenida da Liberdade. E era sempre aquele vulto esguio, e era como se o nevoeiro a fizesse dançar.
"Preciso de dois quarteirões para te apanhar", pensei. "Não vires já". E andei como se corresse.
Andei cada vez mais depressa, tão depressa que agora tinha de ver o chão com cuidado e só de vez em quando podia levantar os olhos. Mas ela estava cada vez mais longe, era agora um vulto pequeno muito à frente, e não podia ser. Ela não ia a correr. Vi tudo o que podia ver dos seus passos. O xaile ou o manto esvoaçavam como se houvesse muito vento mas não havia vento nenhum. E o nevoeiro fechava-se como se estivesse ali para a ajudar.
Tive de parar numa esquina para deixar um táxi passar. Comecei a correr. Desviei-me de dois polícias. Não me aproximei nem um palmo. Já tínhamos saído da Avenida e ela entrou nas ruas cada vez mais estreitas que levam à minha casa. Como se me seguisse, embora fosse à minha frente. E fui eu que tive medo (mais ainda do que do homem de azul) e parei e dei uma volta grande para chegar a casa pelo caminho mais comprido. Ela não estava à minha porta, não. E já não havia nem rasto de nevoeiro.
Não tenho a certeza, claro. Mas acho que alguma coisa de fora caminhou no Bairro nessa noite.