As coisas choram
Talvez a frase mais triste em mim seja a que uma vez encontrei num livro de história da idade média: "porque os homens vão embora, e as coisas choram". Quem a escreveu falava de um túmulo abandonado, tinha quase oitenta anos, e não deve ter dado por ela. Deixou-a ali, como eu às vezes deixo um bilhete de cinema a marcar as páginas de um livro. Lembrei-me disso porque estive a ler Bruce Chatwin, e o que ele diz sobre a afeição pelas coisas (está a falar do espírito do coleccionador) ser o resultado de em criança não ter podido haver a afeição pelas pessoas: as coisas não nos traem. Quando tinha dezanove anos escrevi na primeira página de um diário, que foi a única e que acabei por saber de cor: "sou um coleccionador de almas". E sempre reparei nos sorrisos, nos gestos, nas palavras que por um momento fixam, como se fossem uma fotografia, coisas que as pessoas não sabem que trazem consigo. Talvez essas coisas sejam a alma. Talvez essas coisas sejam a coisa que chora em mim quando vejo coisas sozinhas. Ainda tenho no bolso de um casaco dois pedacinhos de pau que apanhei numa praia da Galiza e que depois não consegui abandonar: eu já não estava no mesmo sítio e eles ficariam sozinhos. Eu sei que isto é uma loucura, e que já abandonei coisas muito maiores. Mas a verdade é que quando li essa frase no livro de história não me senti o homem a ir embora. Senti-me a coisa a ficar.
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