20.4.04

Nunca comecei um post com a sensação de ser tão difícil. Vamos ver.

Tive, na generalidade, uma adolescência tranquila depois de uma infância muito estranha. Em criança vivi sempre sozinho, e habituei-me a viver assim. Quando pude começar a sair, aproximei-me de algumas pessoas como aqueles cãezitos que abanam a cauda, e fui quase sempre bem recebido. De modo que não passei por "crises" e "revoltas". Era politicamente radical (muito) mas era um intelectual afável. O bicho estava vivo cá dentro, no entanto: coisas como o divórcio dos meus pais, a que quase não liguei, deixaram coisas por dizer, e coisas por sentir.

Aos dezasseis anos, sempre tranquilamente, arranjei uma namorada (ou ela arranjou-me para ser mais preciso). E o mundo tornou-se o lugar mais bonito do mundo, que era ela. Ao mesmo tempo terminei o secundário com boas notas, e entrei para Direito, sem ideias claras sobre o que fazer (a não ser a revolução). O meu mundo era feito de uns olhos verdes, de muitos livros, de música, de árvores. E tudo numa cidade estranha chamada Porto: uma cidade que não tem muita luz, mas tem sempre pedras escuras e um rio fechado (a Ribeira Negra) e uma chuva que nos chove por dentro e um mar que é sempre um inverno. Sem dar por ela, o meu primeiro amor transformou-se na minha primeira paixão. E o amor não sobrevive onde a paixão comanda.

Devagarinho, sempre devagarinho, muita coisa aconteceu num breve ano (o ano dos meus dezassete anos, o ano perfeito). Fui a Paris, e soube que era sempre o mesmo. Fui ao fim da noite, e soube que a noite é a mesma todos os dias. O mundo tornou-se inquieto em mim, como se as pedras quisessem gritar. Se fosse hoje era talvez mais fácil, há muitas músicas e muitos filmes (há menos livros). Mas nessa altura só talvez os Joy Division falavam do que eu queria ouvir. Ou talvez houvesse outros, não os encontrei. E não encontrei ninguém parecido comigo.

Uma tarde (eu tinha voltado de Paris) junto ao mar de Agosto que era à mesma feito de inverno, tive pela primeira vez na vida vontade de chorar, de gritar, de fugir. Começava talvez a ser um miúdo normal. Mas não tinha ninguém para mo dizer, e assustei-me, e a menina que era o meu mundo todo assustou-se também (e eu não sei se era o mundo todo ela, ainda hoje não sei). O que eu sentia era a imensa fragilidade de tudo quanto tinha, e o fim possível de todas as coisas (de mim, de nós) estava de repente à flor da pele como se fosse um destino. Dei-lhe a mão como se fosse a última vez. Falei-lhe como se fala a uma recordação esbatida. Olhei-a (e fechei os olhos para não a ver mais) como se ela tivesse já ido embora. Como se as coisas todas tivessem ido embora. E nunca gostei tanto de alguém como dela nesse dia. Pouco depois tudo isso aconteceu.

A vida continuava, por entre uns livros de direito tão aborrecidos que não chegavam a ser importantes e o dinheiro com que os pais divorciados tentam compensar culpas que não tinham. Se me perguntassem, teria dito que era feliz. Fiz novos amigos entre aquela tribo estranha que se chama a si própria "gente bem". Percorri muitas cerimónias de iniciação. Mas eu estava treinado a olhar as coisas à minha volta, e a imitar as pessoas que desde muito pequeno só via de longe e de vez em quando. E continuei a portar-me bem.

Vagamente achei que as emoções eram uma coisa complicada. E era fácil para mim andar sorrindo. Tinha tantas paixões e tantos amores fechados nos meus livros, ali mesmo à mão, que não achei que precisasse de mais um. Achei que podia viver com qualquer pessoa que tivesse um bom coração (ainda acho). Casei. Tinha vinte e dois anos, estava a um ano do fim do curso, pensava que o mundo ia sorrir para mim, porque eu tinha sorrido primeiro.

Era, e sentia-me, um "vencedor", mas um vencedor de uma suave guerra. Tinha milhares de planos. Ia fazer tudo em todos os lugares. Eu era a flor culminante de tanto esforço de tanta gente. Tinha notas muito boas e empregos prometidos. Ia ter um filho. A noite tinha sido apenas um sonho mau, e ia viver no dia eterno.

Por uma razão a que sou absolutamente estranho (e que não quero contar) tudo isso acabou numa tarde de chuva e de Outubro. Tudo isso pelo menos na parte material. Não havia empregos. Não havia ouro para colher. A noite afinal espreitava. A tropa também (e nesse tempo era mais tempo).

Umas atrás das outras as coisas não correram bem. Para encurtar esta história, recordo só uma tarde em que a minha filha pequena foi ao médico comigo (estava mesmo doente), enfiou uma bota num buraco na rua e não foi possível tirá-la (à bota, também não foi assim tão mau :) ). E pura e simplesmente não havia dinheiro para comprar outro par. Não era uma questão de não o ter ali, ou de ter de o ir pedir à minha mãe. Não havia. Quebrei. Não era esta a história que me tinham contado, e não era a história que eu queria contar. Não ia ser capaz de mais. E não fui.

Fiz todos os disparates do mundo depois disso. Achei que não devia ter nascido. Revivi a vida toda à procura de erros meus, dos outros, do destino. Culpei toda a gente, e culpei-me a mim. Entrei numa greve geral de viver. E por essa altura estava mergulhado num mundo feito de pessoas ambiciosas e importantes, um mundo feito de poder e de negociação, um mundo feito de adultos sérios. Achei o jogo imbecil e quis virar o tabuleiro. Mas não fui capaz de dizer aos meus filhos, "desculpem, afinal quero ser punk". Não fui capaz de dizer nada. Ainda hoje muito pouco digo.

Já falei há dias dessa fase, não quero voltar a ela. Falta dizer que tentei fazer batota. Começar coisas de novo como se essa primeira vida não tivesse valido. Em parte foi bom, conheci outras pessoas que me ensinaram muito e deixei de ser arrogante como era sem saber. Aprendi que o mundo é enorme, e a vida e a morte também. Aprendi que a noite tem sempre a última palavra. E com isso aprendi a ouvir as coisas caladas. Mas aprendi também que neste jogo não damos duas voltas. A primeira vida era já a valer.

O que eu sou agora é isto com mais uns anos em cima. Para muitas coisas é tarde demais. Quem me conhecer só agora, pode achar que estou bem. Quem me conhece há muitos anos acha que alguma coisa se quebrou em mim, e por delicadeza não mo diz, salvo uma ou duas grandes amigas. Sim, nas coisas materiais é a sorte que manda, não o talento ou a vontade. Somos folhas no vento.

Se tiverem visto o Daredevil (não me lembro do nome em português) lembram-se da chuva que revela por instantes o rosto dela a quem é cego para o mundo dos outros e vê os outros mundos que os outros não vêem (se não viram, vejam o filme só por causa dessa cena). Chorei ao ver isso (não é grave, eu até chorei na Fuga das Galinhas). Passo os dias à procura de um pouco dessa chuva, e é talvez por isso que estou aqui agora.

Não sei muito bem o que quero dizer com isto tudo. Não disse, mais uma vez, o que queria dizer quando comecei. Talvez que o que nos acontece não é muito importante. Importante é o que acontece aos outros à nossa volta. Não ser importante não quer dizer que não nos ouçamos com atenção. Temos muito a dizer para nós. Gritos, recriminações, zangas, tudo isso anda cá dentro e andará sempre. Não devemos fechar as portas de dentro. Já basta o mundo ser tão mau. Mas não devemos adorar-nos (no sentido religioso da palavra) nem odiar-nos. Devemos ser, talvez, o primeiro dos nossos filhos, mesmo se outros não tivermos. Amar, educar, escutar, ajudar. E dizer "agora sossega", "agora eu estou aqui", "dorme". E tentar perceber que no fim de contas quase nada tem importância, excepto o bem que podemos fazer.

E quero dizer outra coisa. No meio disso tudo encontrei uma pessoa que era, sem dúvida nenhuma, a "certa", por todos os critérios de todas as paixões do mundo. Também tinha olhos verdes. Também foi o mundo todo. Também foi feita de instantes e de acabar. Ou seja, fui feliz por algum tempo, o que me ensinou que é possível ser feliz. Ninguém mais me pode dizer "a tua vida mostra que isto é tudo uma fraude". Não é. Eu posso ser, mas a felicidade, a beleza, a verdade, existem no mundo. Eu vi-as, eu toquei-as. Não serão para mim, não tem muita importância. Ainda bem que são para alguém, se forem.

E aqui estou. Não vivo cada dia como se fosse o primeiro nem cada dia como se fosse o último. Vivi este dezanove de abril como se fosse o dezanove de abril. Em cada hora passa uma hora. Não sei o fim que isto vai ter. Ainda gostava de ver coisas, de fazer coisas, de viver coisas. Não sei se as terei. E depois acredito que isto acabará para começar uma coisa que pode ser mais bonita se eu tiver, agora, compreendido o mínimo. Não consigo (e tentei tantas vezes) imaginar um mundo tão incompleto como eu. No meio disso tenho problemas grandes, trabalho demais, tenho pouco dinheiro (tenho imenso, comparado com outros), não gosto da minha profissão. Durmo pouco, fumo. Sim, e há coisas para ver e amar e aprender e sentir e largar e perder.

E há começar todos os dias. A sério, há começar todos os dias. Mesmo no último há-de haver começar de tantas coisas.