17.4.04

Sangue da Terra

Há tantas coisas nos livros. Lembrei-me agora, por causa de coisas que se enlaçam umas nas outras, de um livro que tem uma capa de ficção científica e que é uma história grande antes de ser outra coisa qualquer. Sangue da Terra. Já não me lembro do nome do autor. A tradução portuguesa deve ser dos anos 50 ou 60.

A história começa com um planeta que era habitado por uma espécie de galinhas com asas curtas e inteligência mesquinha. Os restos de um império galáctico em ruínas, como os bairros velhos das grandes cidades. Sujidade, crime, coisas más. No meio havia esse planeta das galinhas, e havia uma gente a quem chamavam humanos e que eram a escória da galáxia. Eram feios, porcos e maus. E havia também um rapazito, que crescera pobre no meio das galinhas. As galinhas (enfim, os filhos das galinhas, seriam frangos galácticos?) riam-se dele, "nem asas tens", "nem sabes voar". E cacarejavam contentes. E o rapazito sentia-se a escória do bairro.

Depois é uma história politicamente incorrecta, e por isso mesmo muito bonita (só que o livro nunca mais há-de ser reeditado...): o rapazito sentia a falta de muita coisa, e não sentia bem consigo próprio. E achava que era uma galinha defeituosa, com uma espécie de erro de fabrico. Não tinha asas. Não era sequer um "humano" normal, uma escória normal. Porque os outros humanos eram muito diferentes dele. Já percebeste que é o patinho feio, claro. Pois é.

O rapazito foge, e por isso viaja, e lembro-me (já me lembro tão mal) de um circo onde há monstros exibidos, havia o Roberto-de-Ferro que era uma espécie de Incrível Hulk e havia uma rapariga albina de cabelos de prata. Presos, acorrentados, exibidos. São os primeiros amigos dele. E as galinhas cacarejavam cada vez mais. O rapazito vai descobrindo coisas, já não me lembro como, descobre que os outros "humanos" eram mutantes (sim, a história pode ter uma leitura racista, tudo pode ser visto com esses olhos), descobre o que é ver um amigo morrer e descobre que era do sangue da Terra.

A Terra era uma lenda em que nenhuma galinha de bom senso acreditava. O planeta que tinha inventado as naves e as viagens nas estrelas e o império galáctico de que só havia ruínas. O planeta que tinha inventado a arte. O planeta dos Homens que não eram feios, porcos e maus. Que voavam pelo universo como galinha alguma seria capaz, e sem cacarejar ainda por cima. Claro que era uma lenda.

Depois há um fim muito triste. O rapazito apaixona-se pela menina de cabelos de prata e acaba por encontrar a Terra. E a Terra não era nada do que ele tinha sonhado. Eram os descendentes decaídos dos homens que tinham inventado a arte e a viagem e a grandeza e o império. Na noite em que ele chega ia haver uma festa: iam destruir a Vénus de Milo (ou seria a Vitória de Samotrácia?). Iam quebrá-la para que fosse uma noite inesquecível: tu estavas lá? Eu estava. Demos cabo daquilo tudo. O rapazito que tantas vezes acreditara ter a maldição de ser diferente, era mesmo diferente. De todos, de quase todos.

Sangue da Terra. Às vezes custa não saber cacarejar.