16.4.04

Um jogo de mergulhar


Conheces a história da música no Pólo Norte? Deixa-me contá-la para ti.

Sabes? Quando eu era rapazito tinha um atlas com uma capa preta. E um jogo que fazia muitas vezes era o jogo de mergulhar. Era assim, abres o atlas numa página qualquer. Saiu por exemplo a Mongólia. E na Mongólia olhas para um sítio qualquer. É um bocadinho do mapa, e é um sítio onde há-de haver alguma coisa, não é? Pode ser uma montanha. Imagina essa montanha, e começas a mergulhar. Ela está pequenina, como a vês no atlas, e isso quer dizer que estás a voar muito alto. E desces. Desces como se fizesses "zoom", sempre a direito. Como se fosses a flecha e o falcão. E tens de estar sempre a olhar a montanha. E já distingues o rio. Desce. A água. Não faz mal se for noite, a água está lá na mesma. Desce. Já vês a margem, e as pedras da margem. E esta pedra. E vês esta erva junto desta pedra. Pequenina. Quer dizer que chegaste. E pensa muito depressa, "fui a primeira pessoa a chegar aqui, sou a única pessoa do mundo que sabe que esta erva existe junto desta pedra. Mas já haveria erva antes de eu descer? Ou só havia a página do atlas? E que será dela se eu me for embora? E onde estou? Se não fosse esta erva eu não sabia onde estava."

Bem, a história da música no Pólo Norte é isto ao contrário, imagina primeiro o Pólo Norte. O gelo, o que quiseres, desce, desce. Escolhe um sítio. Já chegámos? Estás num sítio do Pólo Norte onde nunca esteve ninguém. Tudo branco, que é como quem diz tudo negro. Bom, só que agora levaste um leitor de CD e levaste por exemplo o Nick Cave. Murder Ballads, pode ser. Pronto, põe a tocar. E agora depressa vamos embora. Sobe, sobe. O Pólo Norte é outra vez aquela rodinha branca no cimo do mapa.

E ficou um sítio no Pólo Norte. Branco a perder de vista. Gelo. Noite. Ninguém outra vez. Menos o Cave, não é? Even God's little creatures... A música (essa forma do tempo, dizia Borges) e o nada à volta dela. Pois. É aqui que a história começa. Não ficou música nenhuma. Porque só há música se houver escutar, e nós viemos embora, não foi? Leste o meu último post? Os homens foram embora, e as coisas choram... Sim, mas choram em silêncio porque nós não estamos lá. O CD funciona, o laser está lá, e os sulcos no disco, e os impulsos eléctricos. E as vibrações no ar. Estão os corpos todos. Mas tu eras a alma deles. Falta a outra parte da história, a vibração do ar nos teus ouvidos, os impulsos eléctricos em ti, alguma coisa a que chamamos consciência... Sim, ...must die, ainda apanhamos as últimas palavras, bom. A música outra vez.

E agora tenta perceber ainda mais, põe isto outra vez ao contrário. Devagarinho. Tu és o Pólo Norte. E agora estás aterrada com o silêncio, embora tenhas em ti o corpo inteiro. Os sulcos estão aí, claro. E nada mais. Mas lembras-te de ter havido música. Então alguém esteve junto de ti, porque alguém teve de ir embora para se fazer silêncio. (Sim, há quem chame Deus a este Alguém que dá forma à música que é a forma do tempo que é a tua alma. E talvez seja isso.)

E agora vou direito ao assunto.

Vivemos num mundo em que as palavras andam perdidas. Não sei quem as perdeu, mas sei o que perdemos com isso. E tudo o que posso fazer é apanhar algumas para ti. Todos os dias eu ouço, ou vejo, ou leio, "ama-te a ti próprio", "perdoa-te a ti próprio". Eu sei o que sou eu próprio, e já não é fácil. Mas sei o que é o amor, e o que é o perdão? É que se pensares em paixões andas tão perdida como as palavras. Mas estas são as palavras mais difíceis. Não há outras assim. E por isso te contei a história do Pólo Norte e da noite e do falcão e da música e de deus, devagarinho. Tanta coisa. Mas repara, não se trata de fazer nada. Ou melhor, fazer, essa é a parte fácil, lembras-te? Descer, descer, subir, subir. Nem precisas do meu atlas de capa preta. Amor e perdão são aquilo que acontece quando há escutar, e ser escutado. E por isso lhes chamamos música. E não mistures isto com a paixão, e não mistures isto com o desejo. Se me apaixonar só vejo em ti a perfeição que os meus olhos inventarem. Se te amar escuto a canção de seres imperfeita. E não me venhas dizer que não há nenhuma canção em ti. Não havia, até eu te amar.

Murder ballads. Um jogo de mergulhar.