25.9.04

As mãos vêem, os olhos tocam. E um filme assim eu não sabia que podia haver. "The village", the bad colour.


Há uma aldeia na clareira dos bosques. Uma aldeia onde entras sem perceber que a porta se fechou devagarinho atrás de ti. Onde vestes um vestido de algodão às flores ou um casaco negro e um chapéu, onde dormes em lençóis que cheiram a lavado, onde as refeições são dar graças pelo tempo que te foi dado. Há uma aldeia na clareira dos bosques, há uma caixa negra fechada em cada casa, há as primeiras árvores que marcam a fronteira dos passos que não vais dar. Há um filme, um filme e há os olhos de espanto de Ivy Walker (fabulosa Bryce Dallas Howard). Porque eu nunca tinha visto um filme assim, uns olhos daqueles. Sim, ela é cega. É cega como nós todos devíamos ser, e vê o mundo todo porque não vê as coisas soltas do mundo e diz a Lucius Hunt (um quase impossível Joaquin Phoenix) "eu vejo a cor que tu trazes, nem todos trazem cores". Há as bagas vermelhas do bosque e o capuchinho desta vez é o capuchinho amarelo, the safe colour. Há um bosque para atravessar, um filme para ver de olhos abertos, tão cegos como cegos são os olhos de Ivy-a-pura.


Vê este filme, ou antes deixa que este filme te veja a ti. Não vás à procura de emoções fortes, não leves pipocas, não vás se te apetecer rir ou beijar ou passar uma noite boa. Vai sozinho, sozinha, como quem vai ao mar à noite, à lua maior, ao inferno das portas fechadas. Não acompanhes a história a pensar, deixa que tudo chegue ao fim e tudo fique tão presente como presentes andavam as flores vermelhas, as bagas vermelhas (the bad colour), como presentes sentiste as criaturas do bosque, those who we don't speak of. E percebe que o bosque todo anda cá dentro.

Há uma aldeia sim (não uma vila, e não vale a pena ter pena dos nossos tradutores) e há a pureza americana de Bryce Dallas Howard. Se puderes tirar os olhos dos olhos dela, vê bem as mãos dela a ver.




Eu não posso contar a história, não posso. Não te posso mostrar as bagas vermelhas, o sangue, e uma faca assim nunca tinha sido filmada, um peso assim. E não é por querer que sejas tu a encontrá-la, é porque não se pode contar uma música, um coração apertado, a mão que se estende para as trevas porque sabe que do meio delas há-de vir a noite assombrosa do amor mais inteiro. Nunca mais se vires isto podes pensar que a noite e as trevas andam de mãos dadas, são iguais. Nunca mais deixas de olhas as folhas douradas de Outono.


As pessoas querem sempre que eu fale, diz Lucius Hunt, quase parado quase a fechar. As pessoas querem que eu fale, e que adiantava dizer que trago tantas coisas cá dentro. Porque a minha mãe guarda a chave da caixa dos segredos.

As pessoas querem falar, e eu não tenho medo porque nunca penso no que me vai acontecer, penso só no que tem de ser feito. Os bosques estão vivos sim, o medo tem máscaras de medo. Mas eu treinei-me a ficar de costas para as árvores vivas, braços abertos, olhos abertos para ver as bagas vermelhas, os olhos tão abertos de Ivy Walker junto ao rochedo-de-falar. E se me obrigas a falar sim dançaremos na noite de núpcias, e um dia aprenderemos a abrir as caixas negras tão fechadas. Que pena que os mais velhos sejam crianças, que pena o filme acabar.

E se me soubeste entender, se sentiste daqui o toque dos sinos-de-aviso, tem cuidado com a cor má. Tem cuidado com as árvores que dançam. Tem cuidado com as mãos abertas à espera do teu coração. Leva as pedras mágicas se quiseres. Mas se puderes atravessa os bosques do engano, e não deixes que os teus olhos se percam como se perderam aqueles olhos todos que só viam as coisas que já sabiam. Procura bem a estrada escondida. Porque o amor é a coisa maior do mundo, diz uma vez o chefe da aldeia. Diante dele, o mundo todo só pode ajoelhar em espanto.