24.9.04

Aguarela

Acordei agora mesmo, no meio de um dia que não parece um dia. As coisas têm estado tristes comigo, e nos últimos dias tenho sido como as árvores da rua onde trabalho, a quem cortaram os ramos talvez para a pedra se ver melhor. Sou como a net quando não há net. Não sei do server a que chamamos alma. As luzinhas vermelhas estão todas acesas nos mostradores que chegam de mim a mim. Ao longo de anos fiz portas corta-fogo entre partes das minha vida: o trabalho, os outros, hoje, amanhã, eu. Para poder rebentar por fases, como os quadros eléctricos.

E sonhei, como sonho sempre que durmo de dia, e em sonhos as coisas falaram. Eu estava em casa (a casa em que realmente vivo, o que é raro, um dia hei-de contar a história da casa grande onde nasci, dos sonhos que quinze anos depois ainda nela andavam, a casa que era casa e corpo e mãe e túmulo. Um dia hei-de-me contar).

Era a minha casa sim, mas só no princípio, só para começar a mudar. Havia luz, a luz fiel das cinco da tarde, das manhãs de Outubro, a luz pousada das aguarelas. A rua é que era uma daquelas ruas que eu trouxe de Paris, feita de casas antigas com uma alma contente, com lojas quietas e tabuletas de metal verde e talvez um vendedor de maçãs vermelhas, acho que havia um vendedor e se havia maçãs havia crianças e uma rapariga sentada numa porta em frente à minha que eu sabia que era pintora e tinha uma fita no cabelo.

Entra, disse eu, entra se quiseres porque a minha porta fica sempre aberta e eu vou ter coisas para jantar. E pode ser que estejam os meus amigos. Vê lá da tua casa, disse ela, e eu soube que tinha tido há muitos anos problemas de droga, vê lá da casa de mim.

Depois subi as escadas (havia plantas nas escadas, havia flores) e a minha casa era uma casa da forma do mundo entrevisto. Do mundo daqui. Uma sala tinha uma porta que dava para outra sala com uma porta. Havia vidros e coisas que deviam ser jardins de inverno e talvez um deles fosse um lago e tenho a certeza que do alto de umas escadas se via um bocadinho do mar. Era engraçado, e no sonho eu pensei estou na Ribeira. Os meus amigos vieram e cada um trouxe um bocadinho das casas que foi fazendo. Por isso aquele cantinho parece uma tenda marroquina, ali um bocadito do Bairro Alto, e ali o Douro e aqui a cesta da fruta e a mesa com pão fresco. Gosto muito da minha casa enlaçada.

Não sei se estavam lá todos. Não me lembro de ver todos, mas os que não estavam haviam de chegar com qualquer coisas nas mãos. Ao meu lado estava agora uma rapariga que tem um blog que está ali no meu cantinho dos links e achei engraçado ter uma camisa de mangas bordadas a azul e verde, eu vejo-a sempre de negro. Nem sequer vamos conseguir jantar ao mesmo tempo, dizia ela a rir (eu só lhe via as mangas azul-verde, lembrei-me agora que num sonho que contei aqui também não havia o rosto), somos tantos nesta casa dos mundos. Olha aqueles não conheço, mas trouxeram música e têm ar de gostar de cerveja.

Não me lembro se o sonho acabou (nem sei se os sonhos acabam, se alguma vez aparecem letras para sabermos que podemos acordar e ir fumar um cigarro). Havia coisas que esqueci. Sim, nem sequer vamos conseguir jantar ao mesmo tempo. A música da sala ao lado não tem nada a ver com o cantinho de mar ao cimo da escada. Se calhar a chave da porta já se perdeu há muito tempo, mas não faz mal fica aberta. E a rapariga sentada na rua há-de acabar por subir, há-de dizer eu trouxe uma aguarela.