6.9.04

Sonho

Tive um sonho esta noite, mas prefiro dizer como diziam os antigos, esta noite adormeci e fui em sonhos a um sítio...

Estava num carro com uma rapariga que devia ser (tinha de ser) uma namorada. Não me via a mim e não a via a ela. Nunca lhe vi a cara (era ela que conduzia). Mas não era ninguém que exista ou tenha existido. E por isso era ela, mesmo. Éramos, acho, muito novos os dois, tão novos que me lembro de pensar que era estranho ela já ter carta, e sentir alguma coisa dizer-me que não fizesse perguntas dessas. Porque aquela não era uma tarde de falar, mas uma tarde de coisas inteiras, de coisas finalmente intactas. Estava num carro com uma rapariga sem cara (era ela que conduzia, que me conduzia, era ela a tarde) e se conseguisse não acordar ia ter a história até ao fim.

Andámos em silêncio, depressa porque depressa ela andava sempre, fazia tudo, depressa mais depressa vem. E eu esperava que ela dissesse as palavras do fim. Talvez tivesse os olhos baixos, e por isso via tão bem as calças que ela trazia, negras como era negra a manga de uma camisola no braço firme, a mão parada na caixa das mudanças. Talvez por isso via tão bem a porta do carro - era cinzenta. Não me via a mim. E à minha frente havia uma espécie de teclado estranho, espalhado nas paredes do carro, e com ele escrevi letras que se desenharam no vidro embaciado pela chuva que caía à minha frente. ELA NÃO VAI DIZER NADA.

- Vamos falar, disse ela ao meu lado, e a voz vinha de tão longe, perto de mim.

- Sim, respondi, e como sempre acontece o meu coração seguiu sozinho o resto da história, desinteresando-me do que estava à volta. Sim, vamos falar. Ou melhor, tu vais falar e eu vou ouvir como sempre faço. Vais dizer que está tudo bem e que gostas de mim, sempre gostaste. Mas eu não vou saber para quem olhaste ainda agora na escola antes de entrar no teu carro cinzento, a quem disseste até já eu não demoro.

É pena as montanhas serem de carvão.

Subiste um passeio muito depressa, acho que para parar o carro e finalmente ia ter de te olhar. E o carro começou a derrapar. A tua mão já não está quieta, vejo bem os dois braços a tentar segurar o volante e o carro começou uma dança lenta, lenta imparável e rodamos com as montanhas e a chuva uma dança cinzenta que quer fazer a história acabar assim (tu sempre conduziste tão depressa, sempre fizeste tudo tão bem). O céu está tão baixo à nossa volta, e as letras ELA NÃO VAI DIZER NADA brilham no nevoeiro de fora e eu sei que há um abismo ao lado da estrada e que o carro vai cair. Morrer não é um mau princípio para esta história, pensei. Já a vi até ao fim, e agora sei como vai acabar.

Havia uma música, e só a reconheci quando acordei.

Pain in places where the lovers mourn
Arranging the play things up and down the hall

Forever remain for every day
My honour remains
Forever remain...

E eu soube que os cabelos eram negros como tudo o resto, soube embora continuasse só a ver a porta do carro e as letras douradas e as montanhas do nevoeiro lá fora. O carro continuava a sua dança estranha, e depois parou ao mesmo tempo que a música se calava e as letras agora marcavam no vidro uns versos impossivelmente perfeitos.

- Não vai acabar, disse ela, eu não li o que escreveste no vidro e por isso não vai acabar. Por isso não caímos. Tu percebes tudo ao contrário, eu não disse a ninguém até já e esta era para ser uma história de ficar.

E lá fora era agora a estrada, alcatrão e uma curva longe e talvez uma placa a dizer Viseu ou Vila Real, não me lembro. E ela falava, e era preciso apagar as palavras marcadas no vidro, no nevoeiro. Ou que eu visse o rosto dela, e continuava a não levantar os olhos (a porta do carro cinzenta, cada pormenor do fecho, do estofo, dos botões à minha frente). Last exit for the lost.