30.8.04

Bloody days

Há momentos em que nada em mim se faz de palavras, o que quer dizer que nada em mim há daquilo com que todos os dias me vou fazendo. Tantas coisas há que por dentro de mim querem falar, e hoje não têm palavras que as digam. Agora fazia-me bem saber tocar, talvez um piano ou violino me ajudassem. Ou precisava de ouvir (esta noite não basta ler), ouvir alguém a falar, sentir alguém a falar (e a estar calado) como se pode sentir devagar a chuva a cair numa varanda abrigada.

E no entanto não tenho andado triste, pelo contrário (o calor está a acabar). É como se fosse apenas um espelho ou uma folha em branco. O que me derem ficará cá, mas por mim nada será dado. Uma espécie de Lua Nova, talvez, e não sei se devia ser assim em noite de Lua Cheia como a de hoje.

Deixo aqui, à falta de melhor, o registo de uma coisa que tem vindo a acontecer em minha casa desde quarta-feira. Estou sozinho (com as minhas duas gatinhas). Na quarta, ao acordar, encontrei o lavatório pintalgado de sangue (ou qualquer coisa muito semelhante). Todo ele, até à parede, até à minha escova de dentes (deitei-a fora), cheio de pequeninas gotas vermelhas, que me fizeram lembrar gotinhas de tinta-da-china com que na Escola fiz uns muito imperfeitos desenhos. Não se se já repararam que as gotinhas de tinta podem ser mais pequenas que as gotas de água, não sei porquê. Mas estas eram vermelhas, e percebia-se que irradiavam de um ponto central, nas bordas do lavatório já não eram redondinhas mas rastos com a forma de pequenos cometas.

Pensei (e tão pouco sei de anatomia) que o Gatinho (é o nome da minha gatinha maior) estava com uma hemorragia ou algo semelhante. Pensei no mistério mensal da condição feminina. Pensei que ao acordar não me apetecia limpar lavatórios. E nessa noite, por cautela, fechei pela primeira vez as gatinhas na cozinha, e fechei (eu sei que isso já não tinha lógica) a porta da casa de banho. Na quinta-feira as gotinhas estavam lá outra vez, e eram mais e eram maiores e eram mais escuras. Havia também no chão um pequeno rasto que se perdia (que começava?) na porta. Descobri, assustado, que havia várias (poucas) no espelkho. Olhei-me, apalpei-me, fui ver os lençóis. Nada, não sou eu.

Hoje, depois de dois dias (duas noites) de sossego, as gotinhas estavam lá outra vez. Os gatos têm continuado encerrados à noite. Há menos gotas, mais espalhadas. Continuam a ser vermelho-escuras. Reparei num pormenor: propositadamente deixei, na quinta-feira, duas delas por limpar. Não sei porque fiz isso, se há muitos anos não tenho um microscópio, mas achei que as podia ver com mais atenção, com mais tempo. Nenhuma delas secou.

Não sei quem anda ferido pela casa durante a noite. Talvez seja uma parte de mim. Talvez esteja, outra vez, a viver numa casa habitada por qualquer outra coisa. Os gatos, que tinham a casa de banho como sítio favorito de brincadeira, não entraram lá hoje. Ao fim da tarde dormi um pouco, e é ao fim da tarde que tenho sempre os meus sonhos mais estranhos.