Às vezes sou assim. Quase nunca consigo falar, mas às vezes (raras vezes) não consigo nem escrever. Estou aqui há quase duas horas e já tentei tudo. Comecei por querer escrever sobre o blog da Gotika, e até tinha ontem pensado no que havia de dizer ao falar dele (ao falar dela). Ficou mais difícil do que parecia, e resolvi falar de mim porque era já de mim que vinha falando. Escrevi três parágrafos, e por isso isto tem o título que vai ficar ali em cima. Estava tão bem quando comecei, apenas um pouco cansado apesar de ter dormido até ao pôr do sol. Ouço Beseech, a estranha música "Sunset 28", "the diamond lost her world that day". E depois tudo se transformou. Agora estou com medo como se fosse morrer daqui a uma hora (e como todos nós, não sei se isso não será verdade). Agora não estou capaz de escrever.
Às vezes sou assim, ou ficam assim as coisas de que eu sou feito. Como se o fogo se aproximasse, como se a luz fosse explodir e o ar não soubesse ser respirado. E agora vou lutar com uma noite condenada a ser vencida pela luz de amanhã. Agora precisava que a escuridão fossem os três dias de trevas de que fala a Bíblia. Daqui a sete horas estarei no meio da multidão, e vou ter de pensar, falar, decidir, enfrentar, fazer as coisas que fazem tão bem os adultos contentes para quem o mundo é feito só das cores que o dia-a-dia dá. Vou ter de embrulhar o medo dentro de mim como quem arruma à pressa as provas de um crime. Vou acordar a tremer, e não hei-de querer acordar.
Às vezes sou assim, e por assim ainda bem que às vezes o Goldmundo sabe falar, para que entretanto possam os meus dias ir correndo. Ai de mim quando andamos os dois calados. Porque quando é assim o fogo aproxima-se e o sol transforma-se naquela luz tão zangada e as águas da ribeira começam a ferver. A lua não vai aparecer. A noite não vai trazer a paz nem o silêncio nem... (lembram-se do post do outro dia? pois, a quietude, o céu ausente...). E eu enfrento os pesadelos, completamente desarmado. Só a música me poderia salvar, só a música ou as palavras certas que nunca serão as palavras ditas por mim. Só os anjos.
Tenho quarenta e dois anos, e durante dez andei morto, durante outros tantos perdido. Casei-me aos vinte e dois, mas essas são contas fáceis demais. Tive uma vida feliz mas as coisas não correram bem. Outro qualquer tinha feito tanto com as jóias que deus me pôs na mão ao nascer. Os meus filhos não sabem que cada dia é para mim uma morte, acham-me um pouco estranho talvez. Cada dia que passa me sinto mais velho, e não são saudades da juventude, é o sentir que um dia o dragão será mais forte que eu. Um dia o meu medo será mais forte. Um dia farei um movimento errado com a espada que me resta que é a espada do pensamento frio. A única com que posso enfrentar o pesadelo do fogo, o pesadelo do ar. "Só tens a imagem que fazes de ti mesmo para te sustentar nos oceanos do nada", disse uma vez um poeta francês. E a imagem que faço de mim é este Goldmundo arrastado que me vai sustentando nas asas de não desejar. Far away, so close. Ainda bem que tenho a ribeira. Ainda bem que a Gotika ma ofereceu (e por isso eu queria falar dela).
Quando comecei a escrever a ribeira, disse que queria contar a história verdadeira, e ao dizer isso pensei que queria que isto fosse um sítio bonito e que a mentira é feia demais. E ainda não fui capaz de contar a minha história toda. É a história de uma espantosa derrota. É talvez, também, a história que confirma o que uma bruxa do Alto-Minho disse de mim: eu seria a pessoa mais teimosa que ela algum dia tinha visto, e por isso resistiria ao feitiço que me queriam fazer (eu não estava lá nessa noite). Talvez. Há muitos anos que penso que as minhas qualidades me atraiçoam e só me sustento nos meus defeitos.
Sim. Um dia serei derrotado de vez, um dia em que o medo seja apenas um pouco mais forte do que está a ser agora mesmo. Um dia pedirei misericórdia aos anjos. E só o anjo negro me há-de responder.
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