"[o meu pai] Pegou num dos convivas e levou-o até à janela.
- Que te faz lembrar aquela nuvem acolá?
O outro ficou-se a olhar longo tempo.
- Um leão deitado - respondeu por fim.
- Mostra-o àqueles.
E meu pai, depois de dividir em duas partes a assembleia, levou os primeiros até à janela. Todos viram o leão deitado que a primeira testemunha lhes identificou, traçando-o com o dedo.
A seguir, meu pai mandou-os afastar e levou um entre os restantes até à janela:
- Que forma tem essa nuvem?
O outro ficou muito tempo a olhar.
- Um rosto sorridente - respondeu por fim.
- Mostra-o a estes aqui.
E todos viram o rosto sorridente que esta testemunha lhes mostrou, traçando-o com o dedo.
Depois o meu pai levou todo o grupo para longe das janelas.
- Esforcem-se por chegar a um acordo sobre a imagem que a nuvem representa - pediu-lhes ele.
Mas injuriaram-se uns aos outros sem resultado. O rosto sorridente era por demais evidente para uns e o leão deitado para outros.
- Os acontecimentos também têm a forma que o criador lhes conferir - afirmou-lhes o meu pai. -E todas as coisas são verdade ao mesmo tempo.
- Que seja assim quanto à nuvem, aceitamo-lo - objectaram-lhe. - Mas na vida... Se o teu exército for desprezível em comparação com o poder do teu adversário, ao raiar a madrugada do combate, não está no teu poder agir sobre o resultado.
- É certo - concordou o meu pai. - Da mesma forma que a nuvem se estende no espaço, assim os acontecimentos se estendem no tempo [...]
Voltou-se para o primeiro-ministro:
- O rei, meu vizinho, quer declarar-nos guerra. Ora, nós não estamos preparados. A criação não consiste em modelar, num dia, exércitos que não existem. Seria uma infantilidade. Mas já é criação modelar um rei, meu vizinho, que tenha necessidade do nosso amor.
- Mas não está no nosso poder modelá-lo...
- Conheço uma cantora - respondeu-lhe o meu pai - em quem hei-de pensar, se me fartar de ti. Ela, na outra noite, cantou-nos o desespero de um apaixonado fiel e pobre, que não ousa confessar o seu amor. Eu vi chorar o general, chefe do estado-maior. Ora ele é rico, rebenta de orgulho e viola raparigas inocentes. Ela tinha-no-lo mudado em dez minutos nesse anjo de candura de que ele experimentava todos os escrúpulos e todas as penas.
- Eu não sei cantar - respondeu o primeiro-ministro."
18.8.04
Cidadela III: Para a Catarina
Saint-Exupéry, "Cidadela"
Ed. Presença, 3.ª edição, 1996.
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