4.8.04

O lugar do início (V): o que ontem pensei, sentado sob os arcos de pedra

Não me lembro se já falei disto aqui: se só houvesse homens no mundo, eu duvidaria da existência de deus. Os homens são quase sempre (o que quer dizer que assim eu os vejo) demasiado brutos ou demasiado frágeis. São como uma estátua de bronze que se tenta forjar a si própria, uma estátua ainda mal destacada da rocha informe. São uma coisa que oscila entre o macaco e o anjo caído, como se não tivesse ainda encontrado um espaço próprio.
Viram (mal me atrevo a perguntar, "leram?") o Senhor dos Anéis? Por os homens serem o que são teve o Tolkien de inventar os desgraciosos hobbits: é pelos seus olhos pequeninos que vemos a Terra Média... "Que homens aqueles!" dizia-me uma amiga comentando o primeiro filme (e essa era das que tinha lido a verdadeira história...) Sim, que homens aqueles, e que longe estamos nós daquela silenciosa grandeza... (nós e o simpático americano que se esforça imenso por representar a figura de Aragorn, o herdeiro de mil gerações de reis). É estranho pensar que nós podiamos, que nós devíamos ser assim...
Sim, se só houvesse homens no mundo eu duvidaria de deus. Mas há também as raparigas, e por elas tenho eu a certeza da existência dele, e da existência daquele "que não é prudente nomear na escuridão". Não, não estou a dizer que há loiras divinas. Não. Estou a falar de uma coisa para a qual julgo não haver uma palavra, que tantas vezes é confundida com a beleza ou a juventude (sem ser nenhuma delas), e que elas trazem consigo tantas vezes. É uma forma que parece um gesto, um gesto que parece uma palavra, um sorriso que parece um poema. É um silêncio que parece um grito, um olhar que parece uma noite, uma marca na pele que parece uma cicatriz no coração.
Uma noite, há mais de um ano, voltava eu a casa de madrugada e uma rapariga daquelas "de má vida" pediu-me um cigarro. Quando a olhei percebi que devia ser muito nova e estava quase a cair (heroína, ou a falta dela). Chovia. Falou-me as coisas que elas falam como se recitasse uma história sabida de cor. Tinha uma saia comprida inconguente, como se fosse uma hippie nocturna. Parou de falar e disse estou tão cansada. Sentou-se num banco de pedra, igual ao banco em que ontem sentado recordei tudo isto entre uma bebida e uma música feita de carvão. Disse desculpa ter-te feito parar (eu olhava-a como quando à noite me esqueço que o mundo não é um filme). Fechou os olhos e a cabeça caiu-lhe para o lado como se tivesse adormecido. O cabelo seria muito bonito se estivesse limpo, as mãos esguias podiam ter pintado ou ter sido pintadas. Estavam muito, mas muito sujas. Ao pescoço tinha (via-se mal) uma medalha da Senhora de Fátima. A dois quarteirões dali havia um café a abrir, e eu queria um café antes de me deitar e levei-a e vi-a comer dois bolos como se fossem os primeiros bolos do mundo. Adormeceu em cima do leite quente e ficou com uma madeixa de cabelo branca. Os homens (os empregados, os primeiros clientes que traziam escrita na testa "sei tudo sobre a noite") olhavam-me com olhos de este traz putas para cá.
É isso. Se só houvesse homens talvez eu não percebesse que vale a pena tentar segurar este mundo tosco. Mas às vezes (serão os meus olhos doentes?) o mundo inteiro grita-me assim. Às vezes todas as coisas choram como se estivessem à minha espera. Às vezes o gesto, o silêncio, a imperfeição de uma mulher são como o véu que se abre para o mundo que devíamos ser: e não, não fomos feitos para ser assim. Não fomos feitos para esta brevidade, esta podridão, esta cegueira. Mas se não fomos feitos - para que fomos feitos nós? Quem nos fez e nos desfez desta maneira?