às vezes vou à tua ribeira, disse ela, e olhou-o como se não tivesse a certeza. às vezes vou lá, e gosto do teu sítio de rosas negras. porque é que a fizeste assim?
achas que devia ter o fundo preto em vez de azul, começou ele mas calou-se, pois, e acendeu um cigarro, quase calado quase a falar.
assim, disse ela. como se por lá andassem rosas bravas. como se fosse um sítio intocado. como se o mundo ficasse à porta.
eu gosto muito de rosas bravas, disse ele muito depressa, e não é bem isso, eu gosto das palavras "rosas bravas". como gosto de "lobos baços" e de "chuva" e de "enamorado". gosto da palavra "tu".
e sim, pensou, como se fosse um sítio intocado, mas disso não queria falar, e se tu te lembrares vais deixar essas coisas caladas. por favor, agora não. agora preferia falar de música.
sempre foi o teu mal, disse ela a rir, e agora que não te vejo há anos posso dizer isso sem te zangares. é bom falar contigo quando me inventas. não é como quando eu te gritava.
eu não te inventei, disse ele baixinho. tu tinhas uma pedra azul e tudo começou aí. bem, tudo não, havia coisas mais antigas, mas tu começaste aí. uma tarde e uma pedra azul. e essa é uma história que não contei na ribeira, pensou, a história da pedra azul que não fazia sentido e de quando disseste "six ans nous séparent" e de quando disseste "eu sou um cenário". é uma história que não sei contar.
eu não te inventei, disse ele.
não te zangues disse ela é que tu não tens rosas bravas e não és um sítio intocado. mas finges bem, e sorriu com os olhos verdes, eu perguntava o que vês tu na ribeira, como te vês tu, quem és.
nada, disse ele, e levantou a mão como se quisesse apanhar a palavra que tinha saído sem querer. o que vejo na ribeira é o que eu podia ter sido.
mesmo agora eu não tinha paciência, disse ela, ainda bem que não te vejo há anos, desde a noite do labirinto. porque é que nunca dizes o que estás a pensar?
ouve, disse ele, eu ando cansado. espera aí. então eu digo sem pensar, eu comecei a ribeira sem fazer ideia nenhuma, e às vezes acho que ela me mudou. como se andasse mais calmo. como se começasse a saber as rosas bravas e não só as palavras. às vezes não gosto muito, ainda hoje li que me disseram "as tuas palavras cantam" e senti chorar dentro de mim. é sempre esta distância do mundo, é sempre olhar. e tu sabes que eu não sou assim, e sabes muito mais que eu disso tudo, o que sou o que faço. o que fiz. as minhas palavras cantam sim, e nelas sei que há mundo lá fora. mas eu estou sempre aqui. olha a pintura que eu tenho aqui em cima, vês? é o "Narciso" de Caravaggio, sabes, o tipo que inventou a noite a pintar. o Narciso olhou para um rio e enamorou-se do que viu. e nunca soube que o que via era o seu retrato.
é isso mesmo disse ela tu gostas de um mundo que goste de ti mas não és capaz de te deixar ir. e por isso inventaste a ribeira, fizeste dela um sítio em que as coisas cabem no bolso e em que as rosas são uma palavra a cantar. é mesmo teu.
não era assim que tu fazias? disse ele para a calar. eu sou um cenário. e olha para o Caravaggio, na ribeira até o branco sabe rasgar-se em negro. e aquelas mãos quase pousadas.
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