16.8.04

Cidadela

"É que não foram poucas as vezes que vi a piedade enganar-se". É assim que começa a "Cidadela" de Saint-Exupéry (o do "Principezinho"), um livro que a sua morte deixou inacabado e que talvez tivesse sido um blog se já houvesse blogs nesse tempo. Não foram poucas, não, e por isso toda a Cidadela é a procura do que possa ser, em vez da piedade, um amor de olhos abertos, um amor que chame no coração dos homens aquilo que neles merece ser amado.

... e no entanto... às vezes é engraçado conhecer a origem das palavras. A palavra "misericórdia", por exemplo, quer dizer "amor pelos que não merecem ser amados", e vem da ideia de que só deus é bom: se amássemos apenas quem merece, apenas poderíamos amar a deus... e lá estou eu a mudar de assunto...

E volto à cidadela. Cidadela era o nome que tinha a parte dos povoados protegida pelas paredes fortes de um castelo. E o livro é todo sobre a força e a fragilidade. Sobre o pouco que são as muralhas de pedra que não sejam edificadas sobre o coração dos homens. Não há nele uma história (e por isso parece um blog), mas uma espécie de diário de um príncipe, senhor do deserto e da cidadela. E é quando as coisas andam adormecidas, quando os homens repousam confiados na única força da pedra e das muralhas de pedra, que o príncipe se mantém vigilante, que percorre sozinho a sua cidadela e se apercebe da sua espantosa beleza e da fragilidade dos corações que a sustentam.

Lembrei-me de tudo isto ainda, e outra vez, por causa dos sonhos e da tentação de sucumbir aos sonhos. Viajo no mundo-dos-blogs e encontro muitas vezes flores e borboletas, conchinhas de mar e palavras leves como penas de pássaros. Tudo parece uma Primavera do Disney, e o azul e o laranja cintilam como cintilam as coisas fáceis. Estranho que, com tantas cores, o mundo "real" seja tão mau, não é? Porque raras vezes vejo "ontem fiz uma pessoa feliz", mas vejo "ontem sonhei que a menina que estava a chorar comia laranjas feitas de pedaços de lua". E sim, não foram poucas as vezes que vi a piedade enganar-se. Não foram poucas as vezes que vi a doçura tornar-se a pedra de um coração duro, como de pedra se torna a terra onde despertaram os vulcões. Por isso dizia, há uns dias, que preferia um mundo com menos afectos e mais valores. Por isso (eu sei) a alegria que vejo no mundo me parece um leve lençol que mal cobre as coisas que desaprendemos a olhar.

Eu sei que não há só laranjas e borboletas. Há também, quantas vezes, lágrimas e sangue e estar sozinho e não querer acreditar no que aconteceu. Há a revolta, e há tantas vezes a ironia que é a última arma dos desesperados. E eu não posso deixar a minha cidadela andar assim. As pessoas à minha volta andam agarradas a coisas, como aquelas crianças tristes que esmagam uma boneca suja contra o coração pequenino. Às vezes as coisas são borboletas. Outras vezes são as memórias negras da noite. Cada vez as vejo mais como formas do medo, e do medo do medo. "Oh cidadela, eu queria saber construir-te no coração dos homens!..."