19.8.04

rosas de março: se eu morrer amanhã, bonecas roxas...

Estou de novo a chorar. Entrei ali e a Nevernaya calada a um canto, costas voltadas para eu lhe ver só o cabelo, abraçada aos vidros da janela como nunca mais voltamos a saber estar depois de ficarmos grandes. Estou de novo a chorar, e foi nos vidros de uma janela e de Dezembro e de chuva que a minha irmã me veio dizer não desças, o avô morreu, e eu fiquei tão quieto tão parado e a certa altura pensei então é isto pensar e agora já sei porque é que os grandes às vezes se calam. Não quero ser grande assim, mas era tarde e ter dez anos é muito cedo para ser tarde.

Mas não vinha aqui falar de mim. Vinha falar das rosas de março e nem sei se devia dizer estas coisas. Talvez devesse dizer olá Nevernaya olá Kearinn-a-negra, os vossos blogs são fixes, visitem o meu, experimentem falar mais vezes do Winnie-the-Pooh. Talvez devesse dizer aos quinze ou dezasseis anos não se dizem coisas dessas, pelo menos num blog onde nós os crescidos podemos ver e podemos ver que afinal somos todos pequenos, somos todos crianças com uma boneca suja esmagada contra o coração. Talvez devesse ficar calado porque a Nevernaya diz nasci nesse dia que já uma vez esqueci e mais vale deixá-la pensar que nós grandes já aprendemos a esquecer. Mas já não fiquei calado quando da outra vez encontrei os caminhos de Tir Na n'Og e quando disse nunca tinha entrado num lugar tão negro. Foi lá que fui ouvindo falar de Nevernaya-a-fiel e foi lá que as comecei a ver como filhas de uma fada qualquer, foi lá que comecei a gostar da história destas meninas e a misturá-las no meu coração. E agora a Nevernaya também tem um blog, e também tem com ela a verdade que parece o canto das harpas: sou pura.

E por isso, se vocês todos que já são grandes seguirem a Via Occulta para Tir-Na-n'Og ou se forem à procura das rosas de março, entrem lembrando-se que entraram em terra sagrada. Andem devagarinho para que as fadas não se vão embora. Sacudam dos ombros os despojos do dia antes de entrar. Peçam a um deus qualquer que nos perdoe a fraqueza, a cobardia, a nossa parte em termos aceitado crescer deixando o mundo ser o que é, fingindo tantas vezes que não era nada connosco. E sintam a música que há nas palavras da Kearinn e da Nevernaya, mesmo quando elas gritam baixinho, mesmo quando elas choram-dentro ou dizem estou de novo a chorar. Porque a música é às vezes feita das lágrimas do mundo.

Eu já não me lembro se era assim, Nevernaya, já não me lembro se as minhas palavras pareciam o fogo frio das vossas. E a almofada a que eu me agarrava foi para o lixo há muitos anos. Sim, perdi-me em Londres com nove anos e não tive medo nenhum, perdi-me de amores aos dezasseis e tive muito medo. E nesse tempo era eu o guardião da terra encantada. Nesse tempo às vezes choravam em mim as coisas misturadas, e a alegria também me fazia triste como às vezes muita luz nos faz franzir o nariz. Chorei porque ela era tão bonita. Tive medo porque ela me disse quando fizermos dezassete anos hei-de arranjar maneira de saltar a janela de noite sem o meu pai acordar. O meu coração ficou pequenino na primeira noite de chuva, a andar a pé os seis quilómetros que nos separavam para lhe deixar na janela às duas da manhã uma flor de madressilva, rosas de março para quando ela quisesse acordar. Gostas de madressilvas? tinha-me ela dito. Eu nem sei como são, mas o nome é o mais bonito. As rosas hão-de ser quando formos grandes. E tudo isso eu finjo que passou, e por isso chamamos a ontem passado.

Ah, é verdade. Uma vez fingimos que não tinha havido aula de matemática e a mãe deixou-me entrar em casa dela e vi a porta do quarto e nele havia uma bonequita roxa. Por isso colhe as rosas de março, Nevernaya, colhe às braçadas as flores que os deuses todos te quiserem dar. Veste o esplendor do azul, a glória do laranja. Não deixes sozinha a solidão da Kearinn. Sabes, nós os grandes temos muito pouco poder, e chove no mundo tantas vezes. Talvez não haja mais nada nele senão bonequitas roxas, não haja mais nada em mim senão a ausência de um deus. Mantém-te fiel a tudo o que requer fidelidade. Porque são as rosas de março que coroam a fronte das rainhas verdadeiras. E nessa coroação encontrarás a permanência, que é o sentido do mundo, e na permanência a alegria, que é o sentido da alma. E nascerá em ti a música baixinho que finalmente te murmura pronto, passou.

E vocês os grandes, sim, olhem com amor as rosas de março, caminhem na terra sagrada devagar...



Gather ye rosebuds while ye may,
Old time is still a-flying:
And this same flower that smiles today
Tomorrow will be dying.
The glorious lamp of heaven, the sun,
The higher he's a-getting,
The sooner will his race be run,
And nearer he's to setting.
That age is best which is the first,
When youth and blood are warmer;
But being spent, the worse, and worst
Times still succeed the former.
Then be not coy, but use your time,
And while ye may, go marry:
For having lost but once your prime
You may for ever tarry.

Robert Herrick (1591-1674)

(duas pinturas dos "pré-rafaelitas" ingleses, que são sempre coisas parecidas com as rosas de março: "Ofelia", de Arthur Hugues [1832-1915] e "Gather ye rosebuds while ye may", de John Waterhouse [1849-1917], que retrata o poema que aqui deixo também)