Ontem andei a tentar lembrar-me de quando teria sido o meu primeiro olhar para o "lado negro" do mundo (se é que existe mundo fora dele). Não falo do "sofrimento" ou da "dor" sentidos, estou mesmo a pensar em "influências culturais". E isso, ao contrário do que deve acontecer com tanta gente, não deve ter sido tanto na adolescência. A maior parte das minhas coisas aconteceram cedo demais, ou muito tarde. A Florbela Espanca encontrei-a aos dezassete anos ("tenho vinte e três anos, sou tão nova..." eram versos que me faziam sorrir). Antes disso, comecei de repente a escrever palavras sombrias que eu mesmo não entendia bem. Atrás dessas palavras havia música (Beethoven, talvez). Mas, e antes ainda? E de repente lembrei-me do meu avô (o que quer dizer que eu tinha menos de nove anos) e destes versos, e da imagem, que não me lembro se estava em alguma gravura que tivesse visto ao mesmo tempo: a água transparente de negro, a noite, a lua.
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Ó pescador!
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Ó pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Ó pescador!
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Ó pescador!
Almeida Garrett
E lembrei-me de ter pensado (teria mesmo nove anos? mas sim, só pode ser...) que não fugiria dela, não. E não fugi.
pintura: o pescador e a sereia, de Knut Ekvall (1843-1912)
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