31.8.04

Eu, Goldmundo (II)

A história de uma espantosa derrota, dizia eu há uns dias, e não sei se disse bem. Hoje teria dito também a história de uma lucidez doentia, mas talvez não dissesse mais, nem dissesse melhor.

Nós somos livres, diziam os sábios antigos, quando não obedecemos aos caprichos de ninguém, nem sequer aos nossos. Quando não somos escravos de ninguém, nem sequer das nossas paixões, dos nossos desejos. Quando vivemos cada dia de acordo com o mundo todo, e com a verdade que é o fundamento todo do mundo. Nós somos livres, diziam eles, não se fizermos o que a nossa vontade nos manda, mas se em cada momento fizermos só aquilo que seja bom fazer.

Aquilo que é bom fazer. Não sei porque cresci assim. Talvez por crescer sozinho, e portanto não ter sempre à minha volta a comparação dos outros, que leva ao desejo de ser como os outros, de ter os outros. Talvez por gostar de ler, e ter lido os livros de aventuras em que o herói não o é por ter músculos e super-poderes (pobres crianças de agora) mas porque faz o que deve ser, em cada momento, feito. Talvez por sentir que não gostavam verdadeiramente de mim, e querer abraçar as coisas que não nos traem, não nos abandonam. Talvez por coisa nenhuma. Mas cresci a querer ser bom, a saber que quando fosse grande seriam boas as coisas que ia fazer.

(Tinha eu oito anos quando soube também que no mundo havia a morte, e que eu era mortal. Foi antes ainda de o meu avô morrer, e foi por causa de um cãozito - um caniche preto - que me mordeu na mão, num restaurante de verão à beira-mar. O avô levou-me a uma farmácia, e o senhor da farmácia - estaria a brincar? - disse com ar muito sério "Bom, se o cão tiver raiva o miúdo morre daqui a meia hora. Mas em princípio não há-de ter". "Que coisa", respondeu o meu avô, "a minha filha só chega na quinta-feira". Sim, nunca se esqueçam de que as crianças não esquecem.)

Falei do caniche preto - cães pretos são os que guardam a porta do inferno, alguém se lembra da história dos cães com os olhos grandes como pratos, grandes como mós de moinho? - porque deve ter sido a primeira coisa que eu senti muito (a primeira vez que eu senti medo) e o que disse sobre os sábios tem esta consequência terrível: se quiseres ser bom, se quiseres não viver como o teu próprio escravo, não ouças o que o teu coração te diz. É estranho, não é? É o contrário de tudo o que nos dizem desde que nascemos. Vai aonde te leva o coração... Mas eu continuo a pensar que não é assim. O que nós sentimos não é muito importante. O que nós queremos não interessa muito. O que nós desejamos é veneno a correr. Tudo está no que realmente fizermos.

E não sei se afinal o caniche preto me envenenou, se as coisas negras afinal já cá andavam. Mas os meus caminhos não foram afinal direitos ("não és feito de linhas direitas", disseram-me uma vez...), e por isso o que fiz não foi mais do que desfazer coisas. Não consegui nunca deixar de querer mandar em mim, e por isso de ser escravo das minhas coisas caladas. Não consegui nunca deixar de achar importantíssimo o que sentia, o que queria ter, o que não tinha. Pus a minha alma à venda por um abraço que nunca chegou.

E agora (principalmente se te lembras da minha Rapariga de Azul, se te lembras que nós vemos o que queremos ver), olha bem para a pintura lá em cima. Olha agora. Vês um homem cansado, vencido. Talvez esteja ainda a chorar. Uma rapariga de cabelos cor do pôr do sol abraça-o e murmura-lhe as palavras de consolação... também viste? Pois. A pintura é de Edward Munch. Que fez aquele famoso "Grito", agora roubado. Chama-se "o beijo do vampiro", foi pintada em 1895. Olha outra vez.)

Não sei como escrever que estou a sorrir e um bocadinho triste. Os caminhos do bem requerem muita coragem. E eu sempre fui um cobarde. Vi sombras e voltei para trás. Senti-me sozinho e larguei da mão a espada que me levava (eu julgava que era eu que a levava a ela). Quis ser feliz à maneira moderna. Ou seja, ser feliz por ter momentos felizes. Olhei para mim, só para mim, como aquele Narciso do Caravaggio que também já aqui deixei, como se eu fosse alguma coisa sem o mundo todo à minha volta. Chamei pelos anjos negros.

Sim, a história de uma derrota e a história de uma doença chamada lucidez. Eu que fui criado para ser um homem fui afinal fraco e cobarde. Mas por qualquer razão estranha não consegui também negar que existissem a fraqueza e a cobardia. Não consigo deixar de ver o bem. Não consigo dizer que tanto faz a cor dos anjos. Não consigo dizer "eu não sou mau, porque o mal não existe".

E pronto. Era isto que eu queria dizer. Queria dizer outra coisa também, que está (consegues entender?) muito ligada a tudo o que em cima ficou. Dizem que Haendel, o compositor, chorou quando ouviu pela primeira vez o "Messias" que é talvez a sua obra-prima. "Não fui eu que fiz isto", disse ele. "Eu não sei fazer uma beleza assim". Eu não sou o Haendel nem fui nunca tocado pelos anjos da beleza. E no entanto esta ribeira tem sido para mim um recanto frágil do mundo, como se não corresse na terra mortal mas no país leve das fadas. E não, não sou eu que a faço assim. O teu olhar tem feito transparentes as águas sombrias. As palavras que me tens deixado fazem a ribeira correr. Sim, eu sou o barqueiro e a ribeira e o redemoinho oculto tão temível. Mas de cada vez que estás comigo aqui a barca não é só a barca do inferno.