17.9.04

Baleal



No Sábado, a convite da Catarina-dos-Sonhos, eu e alguns outros passámos uma noite calma que terminou na praia do Baleal. Já passou algum tempo. Os que lá estiveram levaram mais coisas que a areia que entrou em bolsos e sapatos. Há outros que podiam ter estado, que deviam ter estado, que estiveram pelo menos na nossa lembranç, dentro de nós. Esteve também a lua rasgada, esteve também o vento maior.

E estive eu, como de costume quase como se não estivesse. Como de costume quase todo por dentro e quase nada por fora. Quase calado, quase feliz. E agora vou tirar de dentro as coisas que me ficaram, até ficar só com a areia, só com o vento, só com a voz. Os que não estiveram talvez não entendam as coisas, vocês que estavam talvez tenham outra ideia. Mas foi assim o Baleal-de-dentro, foi assim a noite-de-fora e a lua rasgada como são rasgados às vezes os sonhos.

Senti outra vez medo quando entrei nesse país do mar escondido, nesse lugar onde o mar parece tão longe até que numa curva da estrada se chega à terra do fim. É assim o Baleal, foi assim há tantos anos a vizinha Atouguia-da-Baleia que conheci perto de uma passagem de ano e perto de uma passagem de vida. Entro ali (da outra vez também foi noite e vento, mas havia chuva parada) e parece-me entrar num país assombrado, país onde o tempo nos puxa como às vezes nos puxa o mar traiçoeiro. Talvez o sol saiba parar as correntes de tempo, os redemoinhos de estar. Talvez nas manhãs de Agosto haja praias com crianças e bolas e risos e gelados. Talvez seja sempre assim, e quem lá costume andar não dê por ela. Mas se a noite chegar tem cuidado se fores ao Baleal, à Atouguia, às terras do fim. O ar é feito de ossos, o vento cheira a tábuas naufragadas. Sim, talvez seja de mim. Mas o mundo está todo assim dentro dos meus olhos (dos meus ossos).

Da outra vez tinha ido levar os meus filhos tão pequenos, devia seguir para o Alentejo até à meia-noite em Serpa e fui-me atrasando e fui-me perdendo e continuo a achar que era só o vento a puxar. A meia-noite nova ano-novo encontrei-a em Torres Vedras (seria Torres Vedras?) junto a um castelo adormecido e um bêbado acenou-me de uma cabine telefónica sentado e gritou-me feliz natal oh patriota e achei que o ano começava tão bem.

Dois dias depois lá estava de regresso, e saí da auto-estrada porque nunca gostei de auto-estradas (e fiquei a saber que tu também não) e comecei-me a perder e a andar às voltas em estradas sem dono como se a Atouguia me não quisesse entregar os filhos, como se o mar tivesse ciúmes dos seus olhos cinzentos dos seus cabelos de sol. Anoiteceu (e anoiteceu de repente, como se o dia tivesse ido embora como tantas vezes eu vou) e andava eu em montanhas e de-certeza estava a Atouguia tão perto, o Baleal, Peniche, não sei, e não chegava e chovia como se já estivesse no fundo daquele mar que de certeza tem ossos e o limpa-pára-brisas avariou (carro negro) e no banco de trás a Francisca que tinha ficado comigo brincava com uma boneca maior que ela e cantava atirei o pau ao gato e resolvi parar porque não via nada e quando saí para a chuva era um precipício porque tinha saído da estrada e se o carro tivesse andado mais meio metro a Francisca.

Baleal.

Mas esta noite Sábado foi noite de andar tranquilo, noite maior. Porque é que acham as pessoas que é preciso ver para conhecer, ver para escutar? Eu conheço tantas coisas que não vi, de mim que vejo todo o dia (carro negro) não sei dizer coisa que valha. Por isso não foi noite de te conhecer, só de sorrir às coisas que ias dizendo, às mantas em que te embrulhaste, às voltas que davas na capa enrolada (três voltas para a esquerda, três voltas para a direita, sabes que as bruxas às vezes fazem assim?), tantas coisas. Tanto vento, não foi?

Tanto vento frio sim, e a lua (reparaste) que parecia como dizias um rasgão no céu quase negro quase baixo, um rasgão feito para passar a luz feito para passar um sorriso envergonhado. Eu vi uma estrela cadente e até disse baixinho olha peçam um desejo mas tu falavas de brincar e tu acendias um cigarro negro e não devem ter ouvido, mas eu pedi que os pedidos todos fossem que sim. E pensei que éramos a rosa-dos-ventos (rosas bravas) e qual de nós era o Norte, eu o Leste dizem sempre que eu ando a Leste e sim, eu sabia que os morcegos não são insectos estava a brincar.

O tempo afinal tem marés baixas, a certa altura quase parado, como se a noite quisesse ser igual a mim. É bom viver. Agora mesmo recebi um mail, e as palavras de Borges "a mis años, toda empresa es una aventura que linda con la noche". É assim, pois é. Na minha idade as coisas todas são aventuras. Um dia hei-de crescer. E vocês, rosa-dos-ventos, sejam.