O nova-iorquino Andres Serrano pegou num crucifixo, mergulhou-o numa caixa de vidro cheia de sangue e urina e saliva e esperma (não sei se lhe juntou lágrimas também) e tirou-lhe esta fotografia que aqui está. Pissing Christ. Pouco tempo antes tinha feito sangue escorrer numa prancha negra, de uma forma que deu forma à fotografia que antes aqui eu trouxe: Crucifixion. E fez ainda outras coisas com as mesmas coisas.
Não sei bem o que queria ele dizer-nos, talvez que nada no mundo pode ficar longe dos homens, que não há nenhum deus intocado e limpo. E disse tudo o que se pode dizer. Nada no mundo está longe dos homens, e sim os homens são o sangue e a urina e a saliva e o esperma, e são nisso a vida e a morte enroladas, e com eles as mãos que rasgam as feridas e secam as lágrimas, os olhos que se fecham para a noite ou se abrem à última luz. Não há nenhum deus intocado e limpo. Não há nada senão as coisas que nos fazem a nós, a vida e a morte de que somos feitos. No coração do mundo tem assento a Cruz, as entranhas da carne gritam o esplendor da verdade. E todas as coisas são connosco a caixa de vidro de Andres Serrano.
Fizemos tanta coisa os homens, fiz tanta coisa eu desde que me puseram aqui. Fizemos templos e guerras e músicas, cortámos árvores e acendemos fogueiras, dançámos e inventámos a escrita e os arcos de pedra e a mousse de manga. Eu fiz amigos e contas de dividir, uma vez plantei uma árvore que já não existe, e adormeci num comboio, e li as memórias do Marquês de Fronteira e sentei-me de madrugada na Plaza Dos de Mayo a beber cerveja com uma rapariga de cabelos ruivos. Quisemos os homens, e quis eu, coisas grandes que foram afinal coisas pequenas, coisas puras que foram afinal as sobras do mundo. E sempre as guerras e os poemas e o chão de Madrid e a dança das pedras mortas guardam a forma do rosto divino que na noite primordial se contemplou. Não há luz verdadeira que não seja uma luz rasgada. E não há deus que não seja o deus das coisas entregues.
Mistério do ser, mistério de mim. Sou coisa que não cabe no mundo, mergulhada no mundo como mergulhado está o Cristo do santo blasfemo. Sou um corpo que é ponto perdido na imensidão de estrelas, mas as estrelas são só grãos finos de areia na imensidão da minha alma tão grande. Sim, sou esta coisa estranha que é mistura de sangue e de memórias de Maio, de urina e de certeza, de esperma e de amor. Na contradição de que sou feito, ainda bem que o meu Deus é o Deus em que se consomem os contrários. Às vezes sou as escórias mortas, as entranhas mortas. Às vezes sou isto que sou. Mas ao longe a vida em chama, à minha volta a vida em chama, no fundo de mim a vida, a vida toda em chama indizível.
3 Comments:
Mestre Gold.
Bem... a malta até que resistiu um bocado... mas depois sentiu-se compelida a linkar este "post" no "Carne vale" lá na sua net-casa. O que fica curioso é que a sequência de links segue em retrocesso cronológico, produzindo uma espécie de looping circular, o que a malta espera que ponha as cabeças a girar tanto como as da malta... ;);)
Abraço.
Olá Goldmundo
Parabéns pelo blog... ou melhor dizendo, obrigada pelo blog ;)... vou começar a passar por aqui mais vezes.
Namasté
Olá e obrigado eu, Ariadne. Bem vinda sempre :)
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