De vez em quando olho à volta como se estivesse num sonho mau. Pessoas. Pessoas com olhos ou braços ou cabelo ou gestos ou risos, tão diferentes de mim - tão inultrapassavelmente diferentes de mim - tão iguais umas às outras. Sou eu que não vejo? Sou eu que não sou? Pessoas, pois.
Estava num café com muita gente, e todos eram, ao que parecia, homens ou mulheres. Hum. Aquele ali tem barba preta e disse agora mesmo "quaresma" e "sportinguista". Parece um homem. Aquele ao lado é mais magro e não tem barriga, tem uma pele mais lisa e uns olhos pequenos tão atentos ao que não interessa e disse agora mesmo "bué da fixe". Parece uma mulher. Branco, preto, homem, mulher, que se passa aqui?
Tento pensar, "eu sou um homem". Como este e aquele e aquele outro ao fundo. Olha, "nós". E ali e mais ao fundo, "elas". Que tenho eu que ver com esses "nós"? Porque é que estou deste lado do muro? Quem há aqui sequer remotamente semelhante a mim? Quem, sequer remotamente, me completa?
Sinto uma enorme afinidade com a mesa de mármore, que apenas "está". À volta, os homens e as mulheres olham-se longamente e riem. Que partilham eles que os faz tão reciprocamente próximos, tão simplesmente assim?
Na mesa ao lado uma rapariga magra desenha, caneta preta papel branco. Tem o cabelo cortado muito curto, o nariz e a boca de um adolescente e os olhos de uma dureza que lembra revólveres habituados a disparar. Faz-me lembrar a rapariga do "Boys don't cry". Os dedos e o gesto dos joelhos contam-me uma história desconexa, que não bate certo com o modo como pega na garrafa de cerveja (a terceira cerveja) . Aposto que sabe cuspir e assobiar e que um dia caiu de uma árvore. Umas nike brancas muito sujas, uma t-shirt lilás: sim, poderia tocar aqueles ombros tão simples. Tenho a certeza de que não sabe pôr em palavras o dentro, talvez por isso desenhe tão bem (desenhou um corpo sem braços). Tenho a certeza de que já se enganou a abraçar, e talvez não tenha dado por isso. Tão igual a mim, embora eu traga as minhas botas pretas e não tenha o sabor das framboesas e do pó.
Olho à volta, mesa a mesa. O rapaz das barbas dá um murro amigável (um murro amigável?) no braço de outro rapaz de barbas. Homens. Duas raparigas levantam-se e cada uma delas olha para a outra como se se confortasse. A mais alta sabe que é mais alta. Mulheres. Branco preto (cerveja preta bebo eu, e um cigarro maço preto também. O preto protege não sei bem de quê). Na mesa do lado há uns joelhos iguais a mim, uns ombros iguais a mim.
Há corpos que por acaso arrastam consigo um espírito. Há corpos opacos homem mulher. É por isso que desenhas assim, é por isso que escrevo eu? Há espíritos que não sabem bem porque é que lhes calhou um corpo. A linha simples dos ombros.
4 Comments:
há ainda corpos que não sabem muito bem porque raios lhe calharam espíritos :)
custou ler.
Tá bem escrito.
Fiquei sem plavras...
Sabes o quão raro isso é? :P
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