5.5.06

Polonaise

Primeiro fez-me lembrar a Catarina: o mesmo cabelo preto liso com uma franja que parecia dizer eu queria ter sido assim, os mesmos olhos verde-cinzentos, o mesmo sorriso tão duro. Fez-me lembrar tanta coisa, e pensei que talvez ela ouvisse também Joy Division e Bauhaus e talvez vivesse numa casa branca tão despida ("a tua casa é um cenário", dissera eu no último dia, "eu sou um cenário", disse ela. Catarina, e tinha razão). Andava como se dançasse, tão magra.

Lá em baixo Lisboa, atrás o convento da Graça como se o tempo não fosse importante. Eu tinha levado um livro, ela escrevia num papel cinzento coisas que talvez fossem uma lista de compras e talvez fossem o diário de amanhã. Reparei nos sapatos de fivela, no vestido preto pele branca, numa flor incongruente ao pescoço, uma flor de madrepérola que tinha de ter uma história, que talvez fosse a chave de toda a história dela. Reparei na ausência do azul, não sei porquê. Lisboa lá em baixo sim, tão perto a rapariga a escrever. Quase bastava estender a mão, mas podia eu dizer "conta-me a história dessa flor de madrepérola, dessa franja negra mãos brancas", podia eu dizer "talvez pudesses deixar-me entrar"? À minha volta os pássaros.

Um papel cinzento voou, ou talvez um deus brincalhão o tenha arrancado para que as palavras chegassem, não sei. Talvez não seja importante. Apanhei-o, olhei como se não quisesse saber, frases numa língua estranha, pequenos traços. E mais estranho foi ter eu falado, tão raro. Não senti a mão dela quando entreguei o papel, preso nos olhos cinzentos. Cinzento é cor de negro a voar.

Katejina.

Não sei nada da Polónia, disse eu, lembro-me de Chopin e de reis chamados Kasimir, lembro-me dos príncipes Poniatowski, de uma rainha de França, da Virgem Negra que o Papa Velho venerava. Lembro-me de Lech Walesa, do general Jaruzelski, devias ter quatro anos então, eu era um pouco mais crescido. Não sei nada de Portugal, disse ela. Não gosto de estar aqui.

Falámos, ou qualquer coisa parecida. Falou ela, falou como se me obedecesse, Katejina vais-me contar os teus ombros vais-me contar os rios da Polónia, sim, claro que sei capital Warsow, outra cidade? Cracow, pois. Sim, já sabia que conhecias Joy Division, mas eu quero saber muito mais, entendes? Não entendes, não, mas agora não tenho tempo a perder, preciso de saber a tua forma por dentro. Às vezes eu sou assim, depressa.

Tinha vinte e nove anos, há vinte e um que vive para dançar. Contemporary Dance, you know? But I do like Tschaikovsky, so pure. E agora em Portugal na noite, não sou streapper, disse ela, não. Mas sim, tenho de falar com homens para além de dançar, estive em Celorico da Beira e talvez tenha de ir para o Algarve. Os portugueses acham todos que nós nem frigoríficos temos, tenho tanto orgulho na Polónia. Mas é raro chorar, só nos filmes e não gosto do Leonardo DiCaprio, não gostei de Paris. As mulheres portuguesas combinam as cores de uma maneira tão diferente.

Ando há dias a ouvir uma música da Polónia, disse eu. O Requiem de Preisner. Zbigniew Preisner, disse ela. Nunca pensei que em Portugal me falassem dele, conheces Garbarek? Krzysztof Kieslowski? O polaco é uma língua difícil, nunca aprenderia a dizer o teu nome. Quando trabalho sou a Kate. Como sabias que eu era de Escorpião? Estou a falar-te do meu namorado pintor, não sei se devia. Há muito tempo que não dizia estas coisas.

Falámos sim, ou falou ela, ou falaram as coisas que por dentro dela invoquei. Agora já sei a história da flor de madrepérola, embora ma não tivesse contado toda. Sei a razão dos braços tão magros. Sei coisas sobre o nevoeiro de Cracóvia, sobre a música intraduzível. Às vezes eu sou assim. Lá em baixo Lisboa, pois, lá em baixo uma vida a andar. Às vezes alimento-me de ver, vampiro cego. Agora sei a história, agora sei o sangue de Katejina.

Contemporary dances, polonaise.

3 Comments:

Blogger Fata Morgana said...

Eu lembro-me. Não que seja a Catarina, mas lembro-me disto.

Continuo a gostar especialmente da flor de madrepérola, muito para além do objecto em si.

Beijo

7/5/06 04:52  
Anonymous Anónimo said...

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23/5/06 23:25  
Anonymous Anónimo said...

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26/5/06 03:04  

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