27.4.06

Dolls, ou a corda vermelha




Pelos mundos de um Japão feito das cores assombrosas uma mulher e um homem caminham em silêncio. Parecem uma alma de luto, parecem um corpo a sangrar. Une-lhes os pés uma corda vermelha que se mistura com as folhas de Outono, une-lhes a alma uma história de magoar que se mistura com a história que somos. Dolls. Um filme de Takeshi Kitano. Eles iam casar sim, ele deixa-a por uma menina rica, ela deixa-se cair até ser o abismo maior, o espelho maior. Louca, dizem todos. Pouca, talvez. Isso ficamos nós a saber nos primeiros cinco minutos. E depois vêmo-los, tão devagar. Tão longe. Ele volta mas é tarde demais para tudo o que não seja estar junto, a corda vermelha para que ela se não perca quando tudo já se perdeu. E uma corda os ligará, agora que é tarde para as palavras e os gestos. Agora a corda vermelha é a medida e o limite dos passos, das mãos, do olhar, das flores. Agora a corda é o fim, e o fim somos nós, como os nós fortes da corda vermelha. E do resto não vou contar: sabemos tudo desde antes de a história começar, porque as coisas todas são em nós corda vermelha a acordar.

E assim somos nós, mesmo quando nos cremos sozinhos, mesmo quando não damos pelas cores do caminho. Mesmo quando as cores não nos dão nada também, senão o vermelho das cordas. Assim somos nós, arrastando connosco coisas que somos e que no princípio da história se deixaram ficar como se não tivessem para onde ir, como se fôssemos nós os nós que ao mundo triste as amarram. Assim somos nós. Companheiros de fantasmas cegos.

Musgo, posso pôr aqui as tuas palavras?

" Isto é tudo como lutar contra um fantasma. Nunca sei onde está porque não é visível ou palpável. Nunca sei se vem em alturas de sexta-feira treze ou nos festivais celtas.E sei que está tudo aqui, dentro da minha cabeça. E sei que é a minha cabeça a produzi-lo e a materializar o fantasma, a concretizá-lo nas minhas acções e afazeres, não deixando esquecer-me aquilo que fui e sou. Querendo que eu complete a frase anterior com “e serei”. Mas não, eu não serei quem este fantasma me obriga a ser. É estranha a forma como o drama pessoal funciona, como a tragédia pessoal funciona. Tudo aqui, dentro da minha cabeça, sem resolução à vista. Como se bastasse mover um peão para fazer xeque-mate ao que está na minha cabeça e a minha cabeça bloqueasse esse peão. É uma frustração intensa, a materialidade de um pesadelo em que a acção está presa na irrealidade do sonho. "

(Musgo, aqui , no dia 25 de Abril que devia ser dia de outra coisa e daí talvez já não seja)

Que posso dizer? A Gotika, no último post, traz-nos a história dos Amigos de Job-o-da-Bíblia. Vieram quando souberam da sua dor e sentaram-se em silêncio durante sete dias, porque a dor era muito grande...

E sim, eu não diria sete dias mas setenta vezes sete, e talvez mesmo assim não chegue. Talvez seja isto o que faz com que alguns de nós insistam na ideia estranha de se sentir humanos: "podia estar eu, na ponta da tua corda vermelha".

1 Comments:

Blogger Fata Morgana said...

Nunca amarramos a nós com cordas quem quer estar connosco; nem nos amarramos a alguém com quem queiramos estar. A corda é pura razão, apesar de parecer o contrário. Como quem quer querer e se ata a essa ideia. Atamo-nos sempre a fantasmas de nós próprios.

Estranho disfarce de cordão umbilical... unindo-nos aos corpos de ontens.

Um beijo, Goldmundo

29/4/06 07:22  

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