9.4.06



... mixing
memory and desire.

T. S. Eliot

De vez em quando, disse uma noite a Catarina, sento-me na mesa branca com uma folha de papel e redesenho-me. Quando era pequena usava lápis e uma borracha e fazia traços e apagava as coisas de que não gostava, as cores. Agora sou cada vez mais o cenário puro, desenhei-me até saber o traço esguio. O mundo é assim. E é por isso que tens medo. Nunca serias capaz de apagar. Cortar. Escolher. Esperas que o mundo se desenhe em ti. E depois não acontece nada.

(o meu desenho seria assustador, pensei)

Tantos anos passaram (tantos?) e não sei se alguma coisa aconteceu, não sei a que mesa ando sentado. Sim, um lápis na mão como se fosse uma coisa a acontecer. Talvez seja tudo uma folha de papel, talvez esteja ela já rasgada de tanto o mundo a ter apagado. Calar é às vezes uma borracha suja.

Mas sabes, não vou fazer o desenho que me pediste, não vou. Há coisas de que me lembro, e têm sempre a forma do gelo. Há coisas que quero, e são sempre iguais a uma história inventada. E por isso se queres desenhos de flores e de casas e de pessoas a andar vai procurar os desenhos que fiz no colégio, os desenhos velhos. Nessa altura não sabia falar.

Não sou como tu querias. Não nascem camélias brancas no mar de gelo que me embalou. Não há palavras na face pintada a tinta.

Assustador? Eu ainda não te disse as coisas que vão mesmo assustar. Mas sabes, talvez devesses ter fechado os olhos. No meu mundo, ver é uma coisa inesquecível. E agora é capaz de ser tarde. Tarde para me guardar na folha branca. Tarde para o papel que me quiseste dar.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Poemas pedidos (assim como discos pedidos - um pouco démodé):

Publica este poema, por favor (só porque sim ou então porque, às vezes, isto é a tua ribeira):

somewhere i have never traveled, gladly beyond
any experience, your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near
your slightest look will easily unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skillfully, mysteriously) her first rose
or if you wish to be close to me, i and
my life will shut very beautifully, suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;
nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility: whose texture
compels me with the colour of its countries,
rendering death and forever with each breathing
(i do not know what it is about you that closes
and opens; only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody, not even the rain, has such small hands

e.e.cummings

9/4/06 22:56  
Blogger katrina a gotika said...

É interessante. Das muitas coisas que eu digo e que são mais assustadoras do que as que tu dizes, o mais assustador também é censurado e não o revelo.
Começo a pensar, se toda a gente começasse a revelar de repente as coisas mais assustadoras que conhece...

13/4/06 03:07  

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