28.3.06

Terceiro ano, o medo.


Quem dorme à noite comigo
é meu segredo é meu segredo
mas se insistirem lhes digo

O medo dorme comigo
mas só o medo mas só o medo

Amália Rodrigues



Recordação 1. Tenho... que idade tem uma criança que ainda se senta num penico pequenino de plástico (o meu era azul)? São quase horas de jantar. Daqui a pouco chega um tabuleiro, trazido pela [... esqueci-me do nome] com a sua eterna camisola cor de laranja sob o avental branco (janto sempre na sala, que está aquecida; fico a ouvir vozes dos grandes e da mana na sala de jantar, toques ao longe de louça e metal). Estou sentado no penico azul, com um livro com uma história (era um tigre ou um urso, tenho a certeza). Eu sei o que o livro diz. Sei todas as palavras dele. De cor, claro, ainda não sei ler. Mas sei que as palavras estão lá, e que a história é feita delas. A Mãezinha entra na sala com uma mulher vestida de negro. Tenho medo da Mãezinha quando não está sozinha. Nunca está sozinha. Tenho medo do negro, não gosto da mulher, tem óculos. Está aqui, disse a Mãezinha, e disse mais coisas. O negro baixou-se até mim, tirou-me o livro do tigre ou do urso. Ah, temos aqui... [não me lembro do que disse a mulher dos óculos. Quis contar a história mas mentiu. Eu sei o que o livro diz. E sei que vens tomar conta de mim a partir de amanhã. E há qualquer coisa de errado em teres-me conhecido nesta posição]. Ele gosta muito de histórias, disse a Mãezinha sem olhar para mim.

(Tem cuidado, disse o Lobo)

Recordação 2. A mesma mulher. Dona Amélia. Não sei quanto tempo passou. Dias, semanas. Continua a vestir de preto. Ri-se tão alto. O Paizinho também, mas é diferente, ela não está contente quando ri. Já mexeu nos meus livros de histórias. Está a coser um lençol branco, ou uma das grandes toalhas da Avó. Está parada a olhar para mim. Porque tens uns olhos tão grandes, avozinha? Esse é o livro grande que tem uma figura de que gosto (vermelho) e uma de que tenho medo (preta). Olho para a Dona Amélia. No chão tem um cesto de vime igual ao do capuchinho vermelho do livro grande. Agulhas e linhas lá dentro. É o cesto do capuchinho. Eu sei as palavras todas. Mesmo as do fim, que quase não me dizem. A mana já disse que o fim faz medo. A primeira folha não. A Dona Amélia começa a gritar. Eu estou no chão, ou sentado no sofá de riscas. O meu Menino querido qualquer coisa qualquer coisa (Porque tens uma boca tão grande, avozinha?), e abro a boca para gritar também. Mas os braços de negro seguram o lençol toalha armadilha e o branco desce para mim, estou preso. Sinto o branco a entrar-me na boca, a tapar os olhos, os braços não mexem. Sinto os braços do negro. Apertam muito. Cheguei às folhas do fim. [Devo ter gritado porque alguém veio ver. Mais tarde a Dona Amélia foi-se embora]

(Avisei-te, disse o Lobo)

Às vezes penso que é só um problema de memória, de falta de tempo para encontrar a memória: terá havido um momento em que o medo me foi feito, como se fosse um filho. Às vezes penso que sempre fui assim: a distância foi-me negada, como se fosse um erro.

E as duas coisas que disse agora são verdadeiras (porque é verdade que as penso) e estão erradas (porque não podem estar outra coisa). E este paradoxo bloqueia-me antes de qualquer nível consciente.

(Fez-me bem dançar com as palavras. Ainda há bocado quis começar a escrever isto directamente e não consegui)

Pista A: consigo lembrar-me de medos de criança, de medos de rapazinho (que corpo tão peludo tens, avozinha...), de medos de crescido. Mas... quem não consegue? (porque é que ninguém diz as palavras todas?). Lembro-me de me afogar numa piscina, e de me afogar no mar. De saber que ia entregar um exame todo errado. De saber que ia morrer no segundo seguinte, ao volante de um carro, ou no lugar ao lado do volante. De saber que tinha perdido um emprego. Mas... não basta, pois não? Lembro-me de coisas. Lembro-me de que ia deixar os meus pais decepcionados. A minha mulher decepcionada. Os meus filhos decepcionados. Deus decepcionado. Todo o raio de todo o mundo. (Resposta errada, e sabes disso. Toda a gente passa por isso. Tu é que não prestas. Beco sem saída. Volta a tentar)

(Vou-te comer, disse o Lobo)

Pista B: há qualquer coisa como a distância certa entre nós e os outros. Aquilo que não existe num elevador, e sentimos logo que nada está bem. Bom, eu sinto sempre o deserto ou o elevador. Sempre foi assim. Todos demasiado longe (mãezinha) ou todos demasiado perto (paizinho). Todas as relações são invasivas. Falta-me o ar, como quando a outra doida me embrulhou no lençol. Estou demasiado exposto (penico azul). Siga com a psicanálise barata. Para que gostem de mim tenho de ser sossegado (ao longe, as louças e o metal). Tenho de ser infantil. A criança dos sonhos de qualquer crescido. Mas as outras crianças? Nunca entrei na roda. Há um poder estranho em algumas crianças que comandam a roda. Os que comandam a cantiga podem fazer-me mal (tu, vem para o meio). Poder. That's it. A evitar a todo o custo. Olha para a roda e sorri. Adultos pensam em [sexo]. Poder invasivo. Tocar gritar homem mulher. Lençol branco ribeira azul (Patético. Freud em versão tigres e ursinhos. Apenas um vulgar cobarde. Vais dançar até ao fim colado ao chão.)

(Come-me, disse o Lobo)

Ao longo do caminho avança a rapariga de outono... Só me não fará mal o que for igual a mim. Far-me-ei como tu se for preciso. Ah, quanto veneno nas palavras simples. Quantas luzes na ribeira negra. (Más notícias. Há uma queda de água ali adiante. The End. A menos, claro, que saibas nadar. Bela altura para o triplo salto.)

(Olhos nos olhos, disse o Caçador.
É isso, respondeu o Lobo)

17 Comments:

Blogger katrina a gotika said...

Belo momento de psicanálise.
Uma vez, a minha mãe teve a infeliz ideia de subir a escada direita a mim coberta com um lençol a uivar "uuuuu!", a fazer de fantasma. Eu era tão pequena que não consegui interpretar o que era, se era uma mãe ou um fantasma ou uma mãe lobis-fantasma (mãe transformada em monstro). Era bebé e gritei e chorei tanto que quase me saiu um hérnia (sabes que os bebés são frágeis na zona do umbigo). A tua história lembrou-me desse episódio. Claro que a minha mãe estava a brincar e nunca mais brincou. O que lhe passou pela cabeça, jamais vou saber.
O que quero dizer com isto é que as crianças assustam-se com coisas que para os adultos são brincadeiras inocentes. E que nessa altura se pode ter medo porque não se percebe nada da psique da mãe-fantasma-monstro. Quando se percebe a psique dos outros, como qualquer adulto devia (mas a maioria não percebe), o medo permanece. Todos são eventuais lobis-fantasmas de lençol na cabeça a uivarem "uuuuu". É tão ridículo como isto.

Bom texto.

29/3/06 02:59  
Blogger katrina a gotika said...

E o post sobre a burguesia?...

29/3/06 03:00  
Anonymous Anónimo said...

a memória é traiçoeira, recordamos o que queremos e por vezes o que não queremos, limando as arestas fazemos a lenda. bom post. intimista como sempre.

29/3/06 11:10  
Blogger /me said...

Engraçado. Hoje escrevi um texto sobre o medo. E agora li este teu. :)

29/3/06 14:23  
Blogger /me said...

De novo: dançaste mesmo com as palavras. Gostei.

29/3/06 14:27  
Anonymous Anónimo said...

sim há demasiadas "quedas de água"... pena que nos ensinem que a cada uma uma há um "the End"...

nunca entendi isso!!!

expliquem-me por favor o que é um "the end"!!!

acho que ficaste preso no "não prestas" e nunca "voltaste a tentar" realmente nunca voltaste a "tentar-te" (e não deturpes o sentido aqui)...

a humanidade e o falhanço é a melhor coisa que nos pode acontecer a nós...homens... (e nada de letras grandes nesta palavra por favor...)

eu por mim vou tentando a custo novas modalidades de nado...

"veneno"? - sim! as palavras simples podem ser venenosas se não vierem acompanhadas do gesto (e os gestos importantes são tão simples Gold. tão simples!)...

sim! e tu consegues!!!
"um dia eu conto..."
"um dia eu mostro..."

já mostraste, já contaste...vais mostrando, vais contando...

sim só precisas de um empurrãozinho na memória (porque não vale a pena esquecer)...

"eu ajudo...-sei nadar e se não souber aprendo"

o medo é também uma coisa que se aprende... aos poucos... mas antes temos que aprender a não ter medo do medo... coisa difícil esta mas - "desafio-te" (outra vez...)

em breve virá o tempo das cerejas...

e as buganvílias já começam a desabrochar... a medo... (também elas têm medo de ser colhidas... e às vezes morrem para que alguém as possa oferecer em sacrifício...)

gesto simples este...

vê como já conseguiste... vê como vais conseguindo... a medo... com o medo... gestos simples que as palavras não sabem dizer...

um grande abraço

29/3/06 14:28  
Blogger Goldmundo said...

Gotika, a minha ideia é a de que há duas raças de crianças. Se não fosse assim, o mundo seria um lugar terrível, ou um lugar fabuloso. Isto é, se todas as crianças transformassem as experiências em memórias, e as memórias em coisas que vão dar ao negro (em sentido amplo).

Tenho no entanto a ideia de que muuitos psicanalistas defendem que os adultos "adaptados" (os "prontinhos"...) têm apenas memórias e trevas mais fundas do que nós. Tão fundas que lhes ficam inacessíveis, enquanto as coisas não se desmoronarem todas. Não sei.

O post sobre a burguesia lá irá :) é que quando escrevo objectivamente sou muito lento. E em certas noites (as de dançar) não dá mesmo.

Nicomedes, pois é. E no limite, a frase espantosa do Borges: "contei esta história tantas vezes que já não sei se me lembro dela, se apenas das palavras com que as conto". A lenda não vem só das arestas.

/me, já fui ler o teu post. Não consegui aceder aos comentarios, e isso aconteceu já outras vezes no teu blog. Deve haver do meu lado um bug ou lá como chamam a isso.

Sophia: nem sei :) quero dizer, coisas misturam-se com coisas. Não deixo de ver as cerejas e as buganvílias, e mostrar e contar é fácil. Das palavras escritas (como Goldmundo) não tenho muito medo. Embora não saiba se seria capaz de ser um "escritor" que publica coisas e é (ou não) reconhecido na rua.

O medo está na interacção com as pessoas. Na interacção-poder (a maravilha nos blogs não é o anonimato: é que aqui somos iguais).

A menos... a menos que a história seja muito mais estranha (a Gotika diria "muito mais simples").

29/3/06 19:48  
Anonymous Anónimo said...

não estou a falar do que escreves mas do fazer com o que escreves...

e do fazer só... sem sequer teres o que escrever...

"um dia eu conto..."

beijo

29/3/06 21:37  
Blogger Vítor Mácula said...

Gold, Gold, digamos que... gostei tanto do texto que melgarei por outro lado ;)

Lembro-me de alguém que dizia que a sua carreira era o fracasso. E não se referia a frustração nenhuma, mas a um determinado entendimento da existência. Ou incompreensão desta, tanto faz. Não vou dizer quem é, até porque já é a terceira ou quarta vez que te falo dele, e uma tão pouco recomendável companhia (ele, não tu:) ainda nos faz ser julgados por blasfémia (está na moda) ou incitação à depressão das hostes ou à desorganização dos fundamentos sociais (esta hoje em dia, é muito grave, devem andar fragilizados estes fundamentos;)

Tenta um dia, por brincadeira que seja, pôr o teatro no lugar da sinceridade, e esta no lugar do primeiro. (Não faço a mínima do que é que isto quer dizer. Foi o romancista em mim que me mandou dizê-lo, e ele tem a mania de raramente explicar-se, mas pronto :P E não digo isto teatralmente, ou por outro lado, sim, precisamente.

O poeta manda dizer: cuidado com a escrita. É uma amante que exige entrega total, em todas as suas visitas. E o urso da minha infância diz: tem que dizer-se exactamente o que dá na bolha mas de determinado e preciso modo, e por isso é tão difícil.

E eu, não digo nada (mentira, teatro, verdade). Mas se dissesse diria: dá-lhe gás, Gold!

Abraço.

PS: Porra, a Amália, a por vezes rainha das góticas (espero que esta não dê merda com possíveis puristas do fado ou do gótico ;) mas eu cá sou de Alfama, onde moram ambos e muitos mais (bazófia, teatro, humildade;)...

PS 2: Irra, fartei-me de sorrir...

30/3/06 14:11  
Blogger Goldmundo said...

Eu e a gotika já decretámos uma vez que a Amália é gótica. Claro.

30/3/06 15:42  
Blogger Goldmundo said...

Menos nos Caracolitos Espanholitos.

30/3/06 15:43  
Blogger katrina a gotika said...

Sim, menos nos caracolitos. E a Casa da Mariquinhas com as tabuínhas também é muito alegre para o meu gosto.

31/3/06 01:00  
Blogger Vítor Mácula said...

Eh eh eh olha os góticos a recuar perante o lado florido da Amália… Sabem que a Amália, até ao fim da vida, roubou flores nas floristas e etc. Achava escandaloso pagarem-se flores… ;);)

31/3/06 13:32  
Blogger Goldmundo said...

Era altura de dizer "a única flor de que gosto é o cipreste" ;)

31/3/06 15:52  
Anonymous Anónimo said...

apetece-me pensar que as crianças podem ser deturpadas de nascença e por isso mesmo ver coisas onde elas não existem.
apetece-me pensar que as crianças se possam lembrar de coisas e memórias mais fundas que o tempo e por isso têm medo de coisas que existem.
apetece-me ainda equacionar se não inventaremos memórias deturpadas e profundas para justificar os medos que agora existem...
apetece-me pensar, só isso.

2/4/06 09:18  
Blogger Lord of Erewhon said...

Caga na psicanálise... a pra dentro, a pra fora e a prós outros! Nada disso importa.
Dedica-te à literatura, a sério.

2/4/06 14:01  
Blogger Lord of Erewhon said...

A Amália foi uma grande cantora de fado e também uma senhora semi-analfabeta e alcoólica, esperta, mas sem qualquer interesse intelectual... mas enfim, neste País mitifica-se tudo o que é popularucho!

2/4/06 14:06  

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