29.3.04

As asas frias do desejo



Demónio, de Vrubel. Tenho andado a reler um livro sobre anjos caídos (Intimações de morte, Ana Teresa Pereira) e a descobrir dois sobre vampiros (o fabuloso Interview with the Vampire e o catastrófico Memnoch, Anne Rice). Cada um deles merece um comentário demorado, e neles há coisas que nos falam - a frase é da Bíblia - de coisas escondidas desde a fundação do mundo. Mas hoje só estou a olhar para as asas deste demónio. As asas frias do desejo. "Como caíste do céu, Lucifer, filho da Aurora?".
Repara bem, e diz devagar a palavra inglesa: desire. (o Mal diz-se melhor em inglês, She desired dragons). E é logo impossível não sentir as asas e a falta delas, a insuportável proximidade das asas inacessíveis. E no desejo crês que estarias pronto para voar. Mas o que desejas não é nisto o mais importante, pois não? Desejar é em si o sentimento de tudo. E tu não desejas o que te falta, não desejas o que vês. Porque não és capaz de desejar por ti. Desejas sempre ver pelos olhos do outro, e no final seres o próprio desejo do outro por ti, porque sabes que nesse desejo finalmente existirias:
- "Tu ensinaste-me a ver!", disse ela. "Tu ensinaste-me as palavras olhos de vampiro", continuou. "Ensinaste-me a beber o mundo, a querer mais do que..." (in Entrevista, fala a vampira Cláudia).
Isto é simples, e ao mesmo tempo muito complicado. Repara na evolução da publicidade: já não te mostram o gelado, mas o desejo de um gelado. E no limite o desejo puro (desire), o desejo absoluto como é absoluto este demónio.
Não conheço nenhuma obra literária em que isto esteja tão claro como no Henry & June, de Anaïs Nin. Um dia hei-de falar mais desse. Mas o desejo do vampiro e as asas dos anjos caídos são a encarnação do desejo que se contempla a si mesmo.
E é por isso que se compreende - que se pode começar a compreender - o mais extenso dos dez mandamentos: "Não desejarás...". Não é na mulher do próximo que está o mal, ao contrário do que muitos julgam. É no simples desejar.