2.4.04

Everybody hurts

Disse no princípio que isto era uma história verdadeira, e afinal parece que não estou a contar história nenhuma. Vais ter de esperar mais um bocadinho. Já te tinha dito, gosto de contar histórias, que é a única forma de contar comigo. E também já te disse que não gosto muito de falar. Preferia ficar a ver e ouvir, que é o que sempre tenho feito; mas por mais que quisesse não conseguia ouvir a história verdadeira, e portanto tenho que ser eu a contá-la. Mesmo que seja devagarinho, como devagarinho vai tudo dentro de mim. E não digas que estás às escuras, afinal é a Ribeira Negra e o que é que esperavas, luz?!
Agora presta atenção.
Eu não sou uma criança como as outras. As outras, até, só soube delas neste dia de chuva em que o Pai me levou ao Colégio a primeira vez. E ainda não sei como são. Gritam e não estão quietas e (como é que conseguem?) portam-se como se nenhum Crescido ali estivesse. E andam ligadas umas às outras, estes começaram a esmurrar-se como se se conhecessem muito bem e aqueles conversam. Talvez tenham estado aqui ontem a ensaiar e o Pai se tenha esquecido de me trazer. Aqueles senhores ali são Padres, uma vez li que é pecado olhar para trás na missa, e eu olhei. Os sapatos é que me apertam.
Se nunca tinha visto crianças? Claro que sim, então?! Quando chego ao Doutor a sala está cheia. Não gosto. Há bébés de cara vermelha ao colo de mães sentadas que falam baixinho quando eles não estão a chorar. Há também uns do meu tamanho, e até mais crescidos. Destes gosto, fingem que eu não cheguei e fazem isso porque já não querem ser do meu tamanho. Mas os do meu tamanho não querem que eu me sente aqui ou ali ou que faça como eles ou que olhe para os carrinhos que trazem. Ah, e não sei porquê uma vez bati num que me estava a magoar e que tirou do sítio o vaso grande. Uma bofetada pequena, igual à que a Mãe dá quando não quer barulho por causa das dores de cabeça, mas foram todos ter comigo para ralhar. "Numa menina não se bate nem com uma flor. Senta-te aqui." Uma menina. Como é que ia saber? Não é nada parecida com a Mana, mas deve ser porque a Mana está no Liceu e eu tenho três anos. E foi no Doutor também que o Senhor do jornal me deu uma caneta linda porque não acreditou que eu lia o jornal porque as letras estavam ao contrário. Só não soube ler "Washington" que é uma palavra dificil, atrapalhei-me logo no W e li M mas mesmo assim ele deu-me a caneta e disse com três anos e já lê. Eu ia dizer eu ainda não leio muito mas ele pegou-me ao colo e deu-me a caneta. Onde é que o Pai a terá posto? Queria vê-la outra vez.
No Colégio já não tenho três anos claro, tenho seis e fiz anos em Março, estamos em Outubro. Tenho uma pasta com cadernos e um livro muito bonito cheio de letras. Já o li todo ontem à noite. Mas aula só tenho amanhã. Não sei como é que vou aprender a ler porque já sei, se não disser nada e a Professora descobrir? Se calhar põe-me de castigo. Eu quero portar-me bem, vou fazer tudo como fizerem as outras crianças. E pode ser que não me ponham os sapatos apertados.