1.4.04

A história da menina que não era feita de cinzento e
do rapazito que não era feito de mais nada

Era uma vez uma menina que não era feita de cinzento. De resto era uma menina como as outras: acordava de manhã e fazia coisas, e normalmente sabia muito bem o que fazia. Mas não sabia de que cores ela era feita, nem de que eram feitas as coisas que ela fazia.
A menina que não era feita de cinzento adorava andar pela praia: deixava as ondas tropeçar nos seus pés e fingia que as conchas que ia encontrando eram brinquedos perdidos pelas filhas das sereias. Adorava fazer isso, mas não fazia ideia de que quem a visse, mesmo de longe, percebia logo que o que ela fazia era feito de verde e prata... Outras vezes a menina estava muito contente (por exemplo quando comia um gelado), e nessa altura havia nela as cores do sol em Granada e da lua em Veneza (o que era visto por qualquer um, mesmo por aqueles que nunca foram a Granada ou a Veneza; qualquer um, menos por ela).
Um dia, a menina que não era feita de cinzento andava na praia quando ouviu uma voz:
— Olá! — disse a voz.
A menina que não era feita de cinzento olhou à volta mas não viu ninguém.
— Olá! — disse a voz outra vez — Porque é que não és feita de cinzento?
— Quem és tu? — perguntou a menina — Onde estás?
— Diz-me porque é que não és feita de cinzento! — insistiu a voz, como se não a tivesse ouvido.
— Que pergunta tão estúpida! Não era essa a pergunta que devias fazer. Aliás não sei se devias fazer alguma pergunta. O que é isso de cinzento? Aparece, que eu estou a falar contigo!
Mas ninguém apareceu, e a menina ficou sem resposta.
A menina que não era feita de cinzento hesitou (o que era raro nela) e nem reparou numa onda que a veio beijar, como se o mar quisesse dizer que aquilo não tinha importância nenhuma. E então viu que na areia, atrás dela, estava um barquinho todo pintado de branco, com uma risca azul e outra vermelha, muito alegres, a toda a volta. O barquinho estava virado ao contrário, e não se via nada do que estava debaixo dele.
— Já sei onde estás! — gritou a menina, e começou a correr para o barquinho — Pensavas que me assustavas? Vais-me já explicar essa história do cinzento!
Por baixo do barquinho ouviu-se um barulho, como se alguém estivesse a tentar escapar-se para o lado oposto àquele por onde a menina que não era feita de cinzento espreitava.
— Deixa-me estar! — suplicou a voz — Não te queria assustar. Agora és tu que me estás a assustar! Só queria saber porque é que há em ti tantas cores: todas, menos o cinzento!
Mas era tarde. A menina que não era feita de cinzento empurrava já o barquinho com toda a força. Estava furiosa, o que quer dizer que naquele momento era feita quase toda do sol de Granada e quase nada da lua de Veneza, e que os seus olhos (que eram sempre feitos de verde) atraíam para si todo o verde que havia à volta: o mar e as algas e os pinheiros em frente à praia foram perdendo todo o verde que tinham, como se fosse uma maré vaza, e o verde foi ficando inteiro nos olhos da menina furiosa, como se fosse uma maré alta.
Com tanta força empurrou o barquinho que ele se virou, e descobriu um rapazito magro que gatinhou rapidamente para fora. Vestia uma roupa que a menina achou esquisitíssima, sem saber muito bem porquê. Tinha um cabelo engraçado, que parecia feito de caracóis a fingir que eram cabelo liso, e uns olhos grandes, muito abertos, que não fingiam coisa nenhuma e se fixaram nos olhos feitos de verde da menina que não era feita de cinzento como se fossem os primeiros olhos do mundo.
— Porque é que fizeste uma pergunta tão estúpida? — gritava a menina — Nunca te vi aqui na praia. Esta praia é minha. Devias ter começado por perguntar...
— Os teus olhos são feitos de verde e os teus gestos são feitos de prata — interrompeu o rapazito, mas muito devagar, como se falasse consigo próprio — Dentro de ti brincam o sol de Granada e a lua de Veneza como se fossem duas borboletas num jardim de Verão. Isso eu sei, e isso eu não precisava de perguntar. Só queria saber porque é que não és feita de cinzento. Todas as pessoas que eu já vi são feitas de alguma coisa. Mas tu não és feita de alguma coisa: não és feita de cinzento...
A menina hesitou (e já era a segunda vez naquele dia).
— Nunca ninguém me disse que os meus olhos são feitos de verde — respondeu, ao fim de algum tempo, também como se falasse consigo própria— As pessoas dizem que os meus olhos são verdes, mas isso é diferente, não é? Também nunca ninguém me disse que os meus gestos são feitos de prata; dizem que eu sou bonita, mas não é a mesma coisa, pois não? ... Como é que te chamas, rapazito?
— Não sei se tenho nome — respondeu o rapazito, tentando pentear o cabelo com a mão — Nunca ninguém tinha falado comigo, nunca ninguém me chamou nome nenhum... As estrelas riem-se quando eu falo nisso, mas não respondem nada. Mas foram elas que me disseram que não és feita de cinzento.
— Os meus gestos são feitos de prata... — repetiu a menina muito baixinho — Os meus gestos são as coisas que eu faço? De onde é que tu vens?
E a menina que não era feita de cinzento nem reparou que uma onda veio até muito pertinho dos seus pés, como se o mar quisesse saber o resto daquela história.
— Venho dali — respondeu o rapazito impaciente, apontando o céu — De onde é que havia de vir?! E tu não fazes coisas; pois não sabes que são as coisas que te fazem a ti, em cada gesto?
— E tu sabes o que é o cinzento? — perguntou a menina, e agora era ela que falava como se não tivesse ouvido — E tu já viste as estrelas a rir?
— Eu estou farto de brincar com as estrelas — respondeu o rapazito — São muito simpáticas e gostam muito de mim, mas sinto a falta de qualquer coisa. E as estrelas disseram-me que procurasse uma menina que não fosse feita de cinzento, e que se tivesse juízo lhe podia pedir para brincar comigo. Eu olhei para ti e soube que eras tu a menina, porque eu vi tudo o que tu és e não és feita de cinzento. Claro que sei o que é o cinzento...
— Rapazito — disse a menina muito séria — Gosto de ti. Brincas com as estrelas e dizes coisas que nunca ninguém me disse. Já estive em Granada e não reparei no Sol, já estive em Veneza e não reparei na Lua. Não sei se era como tu dizias, mas as coisas que tu disseste fizeram em mim outras coisas. Sim, eu sou as borboletas num jardim de Verão. Mas agora que sei de que sou feita, quero aquilo de que não sou feita. Rapazito, dá-me o cinzento! Se eu sou feita de tanta coisa, se eu trago em mim tantas cores, posso-te dar em troca o que quiseres... Já sei: de que é que tu não és feito?
O rapazito, que a ouvia atentamente, ficou de repente muito triste, e uma onda veio bater-lhe com força nos pés, como se o mar o quisesse avisar de alguma coisa. Mas o rapazito não deu por nada.
— Não sei — respondeu ele, com os olhos fechados — de que é que não sou feito. Quando as estrelas me falaram de uma menina que não era feita de cinzento, eu perguntei-lhes de que é que eu não era feito. Sabes? É uma coisa de que eu nunca ouvi falar, que não vem no dicionário e que eu nunca encontrei em ninguém... as estrelas responderam: "tu és feito de cinzento, rapazito, e não és feito de mais-nada". Também gosto de ti. Diz-me, menina que és feita de tanta coisa e não és feita de cinzento, tu sabes o que será o mais-nada?
E agora, querido leitor, diz-me depressa se vais querer um final triste ou um final feliz para a nossa história. Porque senão eu não posso continuar a falar da menina que não era feita de cinzento nem do rapazito que — tal como esta história — não era feito de mais-nada...

1 Comments:

Anonymous Helena said...

Feliz.

22/9/11 04:54  

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