23.4.04

Intense fragility

Pois. E a frase toda é "nothing which we are to perceive in this world equals the power of your intense fragility". Só um grande poeta sabe pôr as coisas assim, e só um grande poeta encontraria as palavras certas para dizer isto em português. Intensa fragilidade é nome de cocktail do Bairro Alto. Mas a frase é de um bocadinho do e. e. cummings que eu deixei aqui há umas noites.

Na altura não disse nada, porque estava mais a precisar de ouvir falar sobre isso do que a precisar de falar. E assim é que as coisas deviam ser sempre. Mas não há duas sem três, e portanto vou falar agora. Há pessoas (raras) que são ao mesmo tempo as mais fortes e as mais frágeis do mundo. Como se a própria força pudesse ser frágil. Como se a própria fragilidade pudesse ser invencível. Como se os deuses pudessem chorar. Posso dizer que gosto delas no mesmo sentido em que gosto de música. Não ando enamorado de todas elas, mas quando as encontro fico parado a olhar.

Hoje vi uma dessas pessoas (que está comigo todos os dias) entrar num momento muito mau de uma vida em que nada (penso eu) tem sido realmente bom. Eu não sei muito dela. Ou melhor, não sei muitas coisas dela, porque saber dela é muito fácil. É uma pessoa muito forte. Se fosse uma deusa era a Diana caçadora, ou Artémis a guerreira. E de repente a caçadora é também uma folha no vento, sem perder nem um bocadinho da força que a força dela tem. E é isto que me magoa, para além do que me magoa o nada poder fazer para que o sofrimento acabe já.

(E aqui vou interromper-me, para dizer a verdade. Estou a falar de uma mulher, e não faço ideia se isto se aplica também aos homens. Algumas mulheres a quem perguntei disseram-me que sim, e disseram às vezes que isso apenas quer dizer que este reconhecimento da intense fragility não é separável da atracção pelo outro sexo. Parece-me que isso leva água no bico, mas essa seria outra história. Mas a verdade é que ou não sei reconhecer isto nos homens, ou nós somos mesmo o que eu penso de nós: bons rapazes, normalmente demasiado brutos ou demasiado frágeis.)

É como se fosse a injustiça suprema. Já sei que todos nos magoamos. Que as trevas andam por aí. Que todos somos pequenos. Mas a grandeza triste faz em mim uma tristeza maior. Talvez porque a grandeza e a força são tão raras neste mundo feito da brutalidade mesquinha que é o contrário delas.

E há coisas nisto que não consigo entender. É como se estas pessoas usassem a própria força para se deixar magoar. E depois é complicado. Estou a lembrar-me de uma noite em que uma pessoa (sim, uma mulher que também era assim) me telefonou e pediu que a fosse buscar. Era uma história muito simples, uma paixão e uma zanga e uma desilusão e um desespero. Se fosse eu com essa história ficava triste e pronto, calava-me e pronto. Mas nessa noite ali fiquei eu a ouvi-la falar. Durante horas e horas (lembro-me de entrar na auto-estrada e andar sem ir a lugar nenhum durante a noite toda) falou com uma lucidez assombrosa e disse tudo até ao fim e no fim de dizer coisas que só alguém que nunca desvia o olhar sabe dizer era frágil e invencível como a primeira noite do mundo. E que podia eu dizer-lhe, e que podia eu ser perante as coisas terríveis?

Há uma história zen que tudo isto me faz lembrar: "o que acontece quando uma força irresistível encontra uma rocha inabalável?". Sim, o que é um anjo sem asas?