2.10.04

Coisas pequenas (II)

1. Fui outra vez ver A Vila (The Village) com a minha filha. No fim, "pai, podemos ver outra vez? Por favor?". Saímos, fumo um cigarro. Compro gomas. Voltamos a entrar, as mesmas cadeiras nas filas da frente. "Não há nenhum Oscar para a melhor cena, pois não?", pergunta ela depois. Não, pequenita, não há. Nem um Oscar para as melhores árvores. Nem um Oscar para o vermelho mais vermelho. O mundo ainda não é tão bonito como o olhar cego de Bryce Dallas Howard, como as mãos envelhecidas da Sigourney Weaver. E daí, talvez seja.

2. E ontem voltei ao meu lugar dos arcos de pedra. A noite dançou à minha volta como só ela sabe dançar. Gostava tanto de poder escrever ali (eu sei que beber ajuda). Reconheci algumas músicas (uma era Bauhaus, outra talvez Joy Division mas já não me lembro). No fim, Nick Cave, but my name was Elisa Day. Às vezes a beleza preenche todo o espaço.

3. Fui a uma médica que achou o meu estado preocupante. Mandou-me parar tudo durante um mês. Não lhe disse que parei tudo há tantos anos. Pareceu-me boa pessoa, na parede ao lado um desenho infantil para o Dia do Pai. Achei estranho o quadro na recepção, duas zebras em fúria a branco e preto, os cascos, os dentes arreganhados. Esse quadro destruir-me-ia se o tivesse em casa. Estará ali por isso mesmo, talvez. Quando saí, dois homens aguardavam envergonhados, como se nos cruzássemos num bordel.

4. Desde há muitos anos cumpro o ritual de em Outubro beber cerveja preta. Tudo por causa de uma frase de um livro lindo. "Dançaremos. E beberemos a cerveja dos duendes. A doce cerveja preta de Outubro". Outubro é para mim um irmão mais velho.

5. Ando pelo mundo com demasiada bagagem. Mas isso é talvez por não ter verdadeiramente uma casa onde a guardar.