27.11.04

Clara

Não se chama assim, mas é um bom nome para ela e é um bom nome para uma psicoterapeuta, não é? Clara. Não é dos nomes de que mais gosto, talvez porque era assim que se chamava uma tia que tinha noventa anos quando nasci e portanto cresci a pensar que era nome de velhinha. Mas Clara é um nome que faz lembrar vinho branco e uma mesa de madeira sobre o Mediterrâneo muito azul, casas baixas caiadas e sol, e talvez um gatinho a passar na rua empedrada e uma sombra à janela. Clara. E Clara ela vai ser aqui.

Ainda não olhei muito para ela, e com a de ontem já são três as vezes que nos encontramos. Como noutros médicos onde já fui há um divã preto que me parece nunca ser usado, deve ser um talismã. Há duas cadeiras vermelhas (em frente à minha bate o sol da tarde e ela tem de se levantar e baixar os estores, não sei se já percebeu que eu prefiro que haja menos luz, Clara será ela mas claras não são ainda em mim as coisas que quero dizer. Não, ainda não olhei, mas já vi um cabelo negro rebelde cortado curto e umas botas que desmentem as écharpesdouradas que traz nos ombros, como se quisesse mostrar que é uma menina crescida. Ontem pareceu-me que se estava a dominar para falar friamente, como se discutíssemos um problema de matemática. Deixa a mão esquerda pousada no bolso como se estivesse num bar, talvez seja isso. Mas com a direita faz gestos breves, e reparei que tem uns dedos finos e umas unhas cortadas curtas, e que as suas não são mãos de tocar.

Estudamo-nos um ao outro como dois samurais antes do combate ritual. A primeira vez foi mais simples, porque havia um princípio na conversa, bom, eu vim aqui porque a sua colega me sugeriu uma psicoterapia, há muitos anos que penso nisso, sim, foi prozac que ela me deu. Tenho uma irmã, sou do Porto. Não sei.

Depois as coisas começaram. Uma visita guiada às coisas que já contei tantas vezes, ela assustou-se (ou não?) quando lhe falei tranquilamente da astrologia. Não sei se já posso acelerar, se tenho de a levar pela mão mais tempo. Talvez não importe tanto que ela compreenda. Talvez deva falar mais para mim. De vez em quando diz-me coisas muito simples, devem ser coisas importantes e devem ser coisas em que algumas pessoas não teriam pensado. Mas são ainda caminhos fáceis. Fico um bocadinho perplexo, no cinema e nos livros o que nós fazemos é contar sonhos e ouvir falar de sexo e da primeira infância. Lá chegaremos talvez. Deve ser horrível viver assim, disse ela duas vezes já, e não me pareceu que seja coisa que profissionalmente deva ser dita. É sim, Clara, é horrível, e a história, sabes, ainda nem começou.

Quando me levantei deixei o cachecol pousado, e disse-lhe um dia vou-me esquecer dele. E tive a resposta certa, sempre que deixar aqui um bocadinho de si eu tomo conta e dou-lhe depois.

Clara?