18.12.04

Deus-Mãe



O Caravaggio aqui - e coisas que os meus amigos do Tapor disseram sobre arte e sobre coisas menores - fez-me recordar este quadro, o Filho Pródigo de Rembrandt. Passamos da pintura italiana para a pintura flamenga, da luz do Mediterrâneo para as brumas do Mar do Norte. Passamos para um pintor de que nunca gostei muito. Mas deste gosto, e esta pintura que está, creio, em S. Petersburgo da Rússia (algum dia o verei?) bastaria para que Rembrandt van Rijn ficasse guardado nas imagens que guardo comigo.

Continuamos na Bíblia, e da próxima vez hei-de pôr um quadro com deuses gregos ou com a natureza morta do fim. Um dia há-de ser. Mas agora é a história daquele miúdo filho de um milionário (milionário em rebanhos, em escravos, em tendas do deserto assombroso) que veio reclamar ao pai a sua herança, que veio dizer-lhe "a vida é curta e eu quero aproveitá-la bem, não me apetece esperar que morras". Os costumes dos judeus faziam disto uma coisa insólita. Era como se o filho renegasse o pai, e portanto se renegasse a si mesmo. E não se esqueçam que os judeus - povo ético, tão ético - não sabiam que havia uma coisa chamada perdão. Quem falhar uma vez só pode ser julgado, condenado, afastado, calado.

Talvez o pai o pudesse ter castigado, não sei. Mas preferiu (fraqueza de velho?) ceder e vender ovelhas e cabras e dar-lhe o dinheiro cobiçado. E o miúdo foi à vida dele, que é como quem diz foi fazer coisas que todos nós já quisemos fazer. Deve ter tido imensas namoradas de olhos de amêndoa. Deve ter provado o vinho quente da Síria. Deve ter corrido o deserto à conta dos cavalos tão puros do deserto. Deve ter dormido a sesta em palácios de mármore. E depois, um dia, as coisas deram noutras coisas. Os olhos de amêndoa olharam para outro lado, o vinho fez doer. O dinheiro acabou. Talvez tenha ficado doente, como se vê da sua cor tão cinzenta. As coisas correram mais do que os cavalos, e como sempre correram mal. E o miúdo acabou, sem saber como, sem saber nada, guardador de porcos de um homem que não entra nesta história. Davam-lhe para comer as sobras que os porcos não queriam. E o miúdo pensou em voltar atrás.

É difícil voltar atrás, não é, caminhar sobre os passos andados. E fez as coisas da maneira desajeitada que afinal tinha usado desde sempre. Pensou "vou ter com o Pai e vou pedir-lhe que me aceite entre os seus escravos. Pelo menos hei-de ver as palmeiras onde nasci, a fonte de água em que brinquei com os meus irmãos, a música que me embalou. Talvez consiga dormir à noite, sob as estrelas da infância. Talvez, talvez.". E pôs-se a caminho, miúdo cinzento como dourado tinha partido.

O fim da história está contado no quadro. O pai veio ao seu encontro, mal lhe vieram dizer que um mendigo se aproximava, a capa vermelha mal lançada aos ombros envelhecidos. O miúdo começou a falar, e não sabemos se conseguiu dizer alguma coisa se apenas chorou como chorara ao nascer. O pai não deve ter dito nada. E ao lado temos a figura que tantas vezes é a nossa, a do irmão mais velho que sempre se portara bem, que tinha ficado, que tomara conta, e que agora pensa "há qualquer coisa de injusto nisto tudo, eu é que devia ter este abraço, este silêncio, eu é que devia estar no meio do quadro do Rembrandt". O amor é sempre injusto, não é? Porque se tivéssemos só o amor que merecemos não teríamos quase amor nenhum.

Reparem nas mãos do pai. A esquerda tem veias salientes, é mão de homem cansado, dedos abertos para melhor agarrar. A outra... ai, a outra dedos tão finos, mãos de mulher, mãos de mãe, da mãe que também não sabíamos que entrava nesta história. Porque todo o amor tem qualquer coisa do amor da mãe pelo filho perdido. E é nestas coisas pequenas que se vê que andou aqui outra mão, a mão de mestre de um grande, grande pintor.

Poucos de nós gostariam de ter este quadro na sala, não é? É mais giro ter as cores soltas que agora se sabem fazer. Não gostamos de ver que os homens são isto, que a nossa casa de dentro é tudo isto que aqui se mostra: o miúdo cinzento, a capa vermelha, o olhar frio do irmão que se porta bem e que deixa as mãos ficar quietas. Gostamos mais de olhar para o corpo perfeito das raparigas. É fácil vê-las de olhos fechados. Mas eu acho que o velho da capa anda cego, mas é o único aqui cujo olhar nos olha de dentro.

2 Comments:

Blogger Confessionário said...

Gostei mesmo muito... tem tudo a ver
(eupadre.blogspot.com)

28/12/04 00:15  
Anonymous Anónimo said...

Este quadro é lindo, um dos mais lindos que o ofício e a arte, limites humanos, criaram.

O seu texto é lindo, um dos mais lindos escritos sobre o tema que este anônimo leitor já leu.

Parabéns.
Lula Palomanes.

9/5/08 23:19  

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