12.12.04

Mistério da luz


Gosto muito de Caravaggio, o homem que pintou este quadro, e gosto muito da história que este quadro conta. É uma história estranha dos evangelhos: Depois da morte na cruz à vista de todos, corria o boato de que Jesus andava por aí, vivo de novo, homem de novo. Dizia-se que as mulheres o tinham visto, mas as mulheres vêem tanta coisa, beatas tontas. Dizia-se que Pedro fora ao túmulo e o encontrara vazio, mas mereceria Pedro confiança quando na própria noite da prisão e da tortura negara conhecer os amigos? E os homens que tinham seguido Jesus andavam dispersos, confusos, perdidos. O Reino de Israel fora talvez apenas um sonho mau.

Dois desses homens puseram-se, não sei porquê, a caminho de uma cidade chamada Emaús. Na estrada encontraram um caminhante, um tipo mais novo, calado, quieto. O mais novo perguntou-lhes, "e então, novidades de Jerusalém?". "Deves ser o único que não as sabe", disseram os mais velhos, "mataram o Carpinteiro, sabes, aquele que dizia ser o Filho do Homem, o tipo que curou os leprosos. Foram os romanos, ou talvez os reis, ou talvez os padres, ou talvez cada um de nós. Mataram-no numa noite terrível".

"Estava-se mesmo a ver que isso ia acontecer", respondeu o mais novo, "tudo isso se sabia há muito, muito tempo".

E o mais novo pôs-se a explicar-lhes o sentido de muitas coisas, de coisas que estavam escritas há séculos, de profecias, de sinais. Os mais velhos ouviam, faziam perguntas. E faziam uma pergunta dentro de si, quem será este?

Chegou a noite e chegou a luz acolhedora de uma estalagem. Tinham fome, foram cear. E o mais novo, no fim da refeição, disse de repente as palavras que os mais velhos já tinham ouvido, enquanto partia um pão e segurava a taça do vinho quente, "este é o meu sangue".

Os mais velhos olharam-no, e olharam-no como se os olhos se tivessem realmente aberto. E só aí reconheceram aquele com quem tinham vivido, cantado, dormido e sofrido durante três anos todos os dias. Só aí se rasgou a luz que cega. E disseram o que cada um de nós há-de sempre dizer, "onde estavam até agora os meus olhos baços?". Mas o mais novo desaparecera.

Gosto muito de Caravaggio, gosto muito do modo como ele inventou a luz e a sombra. Acho que ele nunca quis pintar um Cristo como nos habituámos a ver, com ar de sábio yogui oriental, com ar de quem faz meditação transcendental e é muito inteligente. Mas quis dar aos homens o rosto cansado dos homens. Em todos os quadros que contam a vida do Filho do Homem (e são tantos), os santos não são figurinhas de cera, não são meninos lindos, não são anjolas suspeitos. Parecem os sem-abrigo de que nos afastamos durante a noite, o tipo chato que está à nossa frente na fila, o vizinho embirrento. Têm caras esculpidas em cansaço e pintadas em espanto, rugas fundas na testa com o esforço de compreender alguma coisa da vida tão grande. Têm mãos cansadas e roupas rotas e adivinha-se que não tomam banho há algum tempo.

Mistérios. Grande, grande pintor, não acham? Grande pintor o Caravaggio, sim. E grande pintor aquele que em nós anda pintando a sombra forte dos dias, e a inimaginável luz do possível.