30.11.04

Narciso e Goldmundo


Narciso era um homem calado, sombrio. Magro. Toda a vida vivera de estudar e rezar na sombra tranquila do seu mosteiro. Um homem feito de paz, da paz das leituras e do desprendimento do mundo, da paz da sabedoria e dos dias iguais. O mestre. A casa. A árvore. O chão.

Goldmundo gostava do sol. Era um homem feito de rir, de andar, de ver. Toda a vida quis conhecer mundo, toda a vida foi feito de perguntas e de dúvidas, de admirações e de maravilhas. O discípulo. O rio. Os cavalos. O céu.

Li-os há tantos anos e não me lembro da história, lembro-me das palavras nunca igualadas de Hermann Hesse, o maior escritor o maior. Li há tantos anos a história das viagens de Goldmundo e da vida de Narciso, tão parada. E eles, tão diferentes, amaram-se de amor inteiro porque sempre souberam, ou puderam aprender, que amar não é ser igual. Amar é ser um dividido, ou melhor, amar é reunir num só aquilo que nasceu dois.

E dividido sempre andei eu, ou andei desde que alguma coisa em mim quebrou ou não quis olhar. Sempre fui dois. E ontem li a frase mais bonita, "nenhum deles era por si triste, a tristeza vinha de cada um deles saber que viver era calar o outro".

Há muitos anos, quando apareceram os computadores e recomecei a escrever, fiz numa noite duas pastas para guardar coisas. "Narciso" se chamou uma, "Goldmundo" foi nome da outra. Mas a pasta Narciso ficou sempre vazia, porque o Narciso de mim (como o Narciso do Hesse) nunca aprendeu a falar, e então o Goldmundo teve de falar pela boca dele. E um dia (uma noite) entrei na net e encontrei o blog da Gotika e li umas coisas que me fizeram querer falar e no sítio do nome escrevi Goldmundo, e Goldmundo fiquei e quero ficar. Já foi há tanto tempo.

Sou Gémeos de Ascendente. E Gémeos é ver o mundo como coisa partida, coisa a partir. Os Gémeos são dançarinos. Mas um deles é o Gémeo da sombra, o irmão negro calado, o gémeo que deve morrer para que o outro possa ser o Rei (conhecem a lenda do Máscara de Ferro? Luis XIV nasceu com um irmão gémeo, e a Coroa não se podia partir...).

Dividido sempre eu fui. E sempre cada um de mim andou mandando calar o outro. E por isso nunca fui a sítio nenhum.

"É preciso reconciliar isso", dizia-me a Clara da última vez. Pois. Saberá ela que é disso que fala esta carta do Tarot, que falam os textos alquímicos, que falam tantas coisas que nem todos sabem ver? O casamento do rei e da rainha, o hermafrodita, o Mercurio, o Cristo-Lucifer dos Gnósticos, tanta coisa. Saberá ela ouvir? Saberei eu ser um dia a dança tranquila?