Um quadro começado por um homem chamado Francia, cerca de 1515, e terminado por um outro homem chamado Passerotti, muitos anos depois, talve em 1570. Um quadro que fala do mais estranho dos mistérios da alegria, o único que não é evidente mesmo para quem só sabe da alegria da terra. Mas que é afinal tão simples, o mistério de ser simples, o mistério de ser comum.
A história que esta história conta é a de que os judeus, quando nasceu o menino Cristo, pensavam que era preciso fazer uma "purificação" no templo depois de cada nascimento. Não sei bem porquê. Não sei se achavam que o sexo era sujo, e que a mulher, claro, era a que mais se sujava. E então a mãe ia purificar-se, o filho ia circuncidar-se, e talvez acontecessem outras coisas. Bem, vamos supor que a história que ando aqui a contar para que possa meditar é uma história de verdade. O menino é Deus-infinito feito homem. A mãe é virgem, antes e depois do parto. Eu li um texto de um padre, no Público de há duas semanas, que dizia, "bom, mas os evangelhos não querem aqui dar uma lição de biologia". Pois não. Querem dar uma lição "à" biologia. Mas não é disso que se trata agora. Trata-se de que esta mulher e esta criança não precisavam de ser purificados. Eles são a Pureza feita carne e sangue e ossos e lágrimas. Um e outro, um no outro. Mistério da alegria? Ainda não.
A Mãe foi ao Templo, e não precisava. A Mãe e o Filho cumpriram as regras, e as regras não eram feitas para eles. A Mãe e o Filho, ela mais mulher do que Eva e ele mais homem do que Adão, fizeram o que eu e tu devíamos ter feito se ali tivéssemos estado. É mais estranho que pagar impostos quando se pode não pagar. Cumprir a regra, e cumprindo-a demonstrar o absurdo dela. Ser igual a todos, e no ser igual trazer a alegria da diferença inteira. Ser comum, e ser único por isso mesmo. Mistério da alegria sim.
Deixem-me lembrar outra história que é quase igual a esta. Havia a mulher adúltera, havia a regra de a apedrejar até à morte. Havia os homens zelosos, cumpridores, que seguiam as regras todas e que por isso a iam matar. E a maioria estava de acordo, claro. E o menino, que entretanto tinha crescido e anunciava os mistérios da Luz, mistérios maiores antes do mistério único do SOfrimento, o menino foi chamado a ser juiz. A mulher deve ter dito "Diz-lhes que esta regra é má; Acaba com a regra que me vai acabar a mim. Grita." Jesus, diz o evangelho, escrevia na areia palavras (que ninguém leu). E disse, "sim, a regra. Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra, força". As pedras cairam uma a uma (terão sido elas a apagar na areia as palavras únicas? não sabemos). Os homens zelosos passaram a maior vergonha. Parece que os mais velhos foram os primeiros a recuar (como eu os compreendo, como eu ando a envelhecer). A mulher foi embora, "ninguém afinal te condenou, e também eu não te condeno. Mas repara, não voltes a pecar". E ela bem sabia qual era afinal o pecado dela.
Pois. Não sei se isto faz sentido. Mas isso mesmo é um mistério para meditar. Há tantas coisas aqui, há tantas coisas neste quadro, o velho a mulher de vermelho o cão. Mistério da alegria, termos olhos para ver, mãos para apresentar o que de melhor anda connosco.
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