13.1.05

Shattered pieces of my soul



(Comentários, coisas soltas, coisas que não couberam em sítio nenhum).

O que ontem escrevi não era o que queria ter escrito. Não estava em noite calma, em noite de mim. E daqui a bocadito talvez responda às respostas que tive. Mas antes está a minha gatinha. Magoou-se ontem. Caiu de uma janela, terceiro andar pedra em baixo. Sete vidas, não é? Cinco lhe sobram, que uma já deve ter gasto ao nascer, noite de Santo António dos peixes e Santo António dos gatinhos mortos patas brancas, noite de não esquecer. Gosto tanto dela. Ontem chorava e os olhos eram os olhos da mãe-a-sofrer de quando ela nasceu. Não sei se vemos coisas que estão cá dentro. Não sei o que seja a alma dos animais, de que falavam as bíblias antes de os padres terem vergonha de não ser modernos. Mas nos olhos de um gatinho pode estar todo o sofrimento, toda a esperança, todo o significado dos mundos. Porque não temos nós olhos que o vejam? Amanhã vai ela ser operada. A minha casa ficou mais escura. O que ontem escrevi, escrevi chegando do veterinário, do raio-X, do raio.

Os meus amigos-tantos do Tapor falaram do Delacroix, e lembrei-me do único quadro dele de que realmente gosto. É este que aqui está, "a orfã do cemitério". Parece a Nastassja Kinski, parece outra rapariga qualquer. Parece uma fragilidade que traz em si tanta força. Não consigo dizer se está com medo, se vem a correr, se estava a ler ou a rezar e um barulho qualquer a sobressaltou. Não sei se está a olhar para Deus ou para o Diabo. Talvez tenha medo dos fantasmas do cemitério. Talvez seja ela um deles. Acho que nem reparou que fiquei parado.

E ontem também descobri que há um botão em que faço "clic" e que me leva para o "next blog". Confirmei há pouco que não me leva duas vezes para o mesmo sítio - um dia hei-de falar do Chesterton, e de uma coisa que ele disse sobre isto e os poetas - Ontem o sítio chamava-se "Shattered pieces of my soul": Anna, americana "in the middle of nowhere" (calculo que seja o Minnesota), e o que li fez-me ficar zangado. 16 anos, "love Jesus, love candies, I'm happy oh so happy". Quem quiser saber quem são os terríveis cristãos fundamentalistas que reelegeram Bush ali tem um blog inteirinho. E que pena, não há declarações de ódio nem frases que signifiquem grandes coisas reprimidas. Há um falar da igreja onde está todos os dias, há uma ida a um concerto com os amigos e o chegar tarde a casa, e o google disse-me o que já sabia, a banda é "inspired by God" e o site até não parece mau. Tirando o cor-de-rosa do blog (oh so american) fica quase tudo o que vejo à minha volta menos a raiva menos a tristeza. E por isso (ai de mim) zangado fiquei.

Zangado fiquei, ou fiquei triste, e descarreguei nos ovos (dois) que não tinham culpa nenhuma eu sei.

Hoje, mais uma vez, acordei a tremer. Se um dia eu me converter talvez o medo fique quieto. "O Senhor é o meu pastor, nada me falta", Salmo 23 e aqui também tinha uma história a contar.

Mas ainda não me converti.

Na sexta-feira não vou poder falar com a Clara-terapeuta. E tinha uma coisa para lhe dizer, tão importante.

Um dia, há alguns anos, estive num sítio diferente de todos os sítios. Não sei se um dia falarei dele aqui. Não fica em Portugal. É um sítio onde acontece uma coisa estranha, um sítio onde o céu desce à terra de vez em quando e onde eu encontrei os santos vivos. Tive muita sorte em poder lá ir, três dias. Um profeta olhou-me e disse-me coisas que não podia saber de mim. Um santo olhou-me e calou-se. O vento passou por mim a caminho de uma capela pequena e senti o que é a alegria como se sentisse uma brisa pequena. E houve uma noite em que ouvi os santos a rezar, tinha havido dias antes um terramoto grande e interpelavam o Coração que nos guarda. Ele, o santo, falou. Falou baixinho. Falou do sofrimento do mundo. Falou do grito das coisas, dos homens, dos anjos. E da sua garganta (terá dado por ela?) saiu o grito mais assombroso que já escutei. Era noite, noite escura capela humilde. Havia velas e havia uma cruz alçada. E subiu até à cruz o sacrifício inteiro por que todo o mundo espera sem saber. Levado nas asas do grito, um grito rouco, fundo, como só um santo ou uma fera podiam gritar. Homens, porque queremos ser isto que somos, se não foi para isto que fomos feitos? (Kearinn, percebes porque é que as coisas separadas magoam? Porque fomos separados desde a fundação do mundo. Podes pensar na espada do arcanjo, podes inventar outras histórias. Toda a alma é um Avalon a perder-se em bruma.)

Eu vi e ouvi estas coisas, e vi outras coisas assombrosas. Vi o Bem e o Mal. Andei por tantos lados, sim. Ouvi do seio de uma multidão de três mil pessoas sair o canto a que se chama "cantar em línguas", e as línguas são, dizem, o canto dos anjos, e dos homens sei eu que não é ele feito. Ouvi histórias de apavorar. Dormi em casas assombradas, e vi as coisas que as assombram. Vi coisas no espelho que não deviam lá andar. Vi rostos tão puros como o da órfã do Delacroix. Vi a minha filha quase a morrer. Toquei toda a beleza, toda a perfeição que um corpo pode dar, toda a tristeza que um corpo pode receber. Vi, ouvi, toquei, senti. E o meu coração continua feito de pedra. "oh tu que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos" (S. Paulo). Pois, porque me não ergo eu, a quem foi dado ver todas estas coisas?

Gostava de ter tempo.