Não tive nunca um cavalinho, e um cavalinho foi a primeira coisa que me lembro de não ter tido. Não, não é bem isso: nunca tive um cavalinho, e lembro-me de o não ter tido porque, a certa altura, houve um cavalinho feito de palavras, um cavalinho inquieto dentro de mim. Toda a minha vida foi assim, e talvez seja assim a vida de todos os outros. Não encontramos aquilo que não deixamos ir embora, não temos aquilo que anda sempre cá dentro. E depois há as coisas que não damos por ela.
Eram versos pequeninos, mas era eu como eles quando me deixaram ficar com um livro que talvez fosse de língua portuguesa e talvez tivesse sido da mana crescida. "Cavalinho, cavalinho / que baloiça e nunca tomba: / ao montar meu cavalinho / voo mais do que uma pomba...". Perguntei ao avô o que era "tomba", mas não me lembro do que respondeu. Agora desconfio que para o avô "tomba" talvez já não fosse uma palavra fácil, não sei se os velhos sabem entristecer. Mas se fosse só isso talvez não tivesse tido importância, e se não tivesse importância não seria verdade nunca ter tido um cavalinho. Passados tantos anos, agora que estou tão grande como a mana crescida, posso fazer-me grande e dizer "bom, também nunca tiveste uma hiena, nunca tiveste uma couve-flor, tantas coisas nunca tiveste". E é verdade que couves-flores e hienas talvez as haja no mundo, e deus queira que sejam felizes assim. Mas quando eu era pequenito não teria percebido se me dissessem "não tens uma couve-flor, que pena". Porque é que deixaram ler o livro que tinha os primeiros versos tristes? Porque é que um cavalinho pode doer, o cavalinho-de-dentro e o cavalinho-que-não?
É que os versos ("cavalinho, cavalinho / de madeira mal pintada... / ao montar meu cavalinho / as nuvens são minha estrada")acabavam, e acabavam de uma maneira que nada no mundo devia ter para acabar: "cavalinho, cavalinho, / já chegam meus pés ao chão; / que saudades, cavalinho... / que saudades, meu irmão..."
Talvez tenha aprendido aqui que crescer ia ser afinal uma coisa estranha, talvez por isso nunca tenha querido andar com os pés no chão. Agora as coisas que me lembro também já foram perdendo a tinta. Teria esquecido tudo isto se me tivessem dado um cavalinho? Não sei, e a mana crescida e o avô já não me explicam as coisas que não sei o que querem dizer. Mas às vezes digo baixinho estes versos, e penso que gostava de ser um cavalinho. Teria sido eu a nunca ser tido, teria sido eu a andar dentro de alguém. Mana crescida, saudade.
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