2.5.05

Eu, os outros em mim (II)

Tenho de pensar, disse eu, e esta noite um sonho pensou comigo, fez-me acordar às quatro da manhã em sobressalto e talvez um dia o conte, ou conte o que ele me quis dizer quando o descobrir.

Trago comigo coisas mortas como se fosse uma casa assombrada. Pedaços de tristeza que fui colhendo sem dar por ela em tantos sítios, tantas mãos. E talvez por isso me sinta vazio, no livro de que falei antes diz-se que mais do que medo do fantasma temos medo da solidão impensável que o fantasma arrasta consigo. Mas só agora começo a entender o que são estes outros que me habitam desde criança. Não, afinal talvez não esteja a enlouquecer.

Um ano de Ribeira e um ano de passar em alguns blogs ensinaram-me coisas que nunca julguei aprender. Foi preciso encontrar um sítio/pessoa que sabe a uma escuridão abraçada. Foi preciso encontrar outro que tem a forma do musgo e do sal que nos deixam na boca as lágrimas beijadas. E outro que só vi ganhar forma quando li as palavras simples, "boneca roxa". De repente sei tudo o que era preciso saber e não sei de nenhuma palavra que o diga. Foi aqui, neste lugar em que os sítios se misturam como perfumes de Outubro, que aprendi a ver o que eram as coisas com que via alguns outros. E sim, agora sei porque é que um dia fiz uma viagem de comboio perto de uma rapariga que era feita de outono e de folhas rasgadas de outono, porque é que uma noite fiquei a ver dançar uma rapariga que era um traço de lápis e era uma chama tão estreita e era as tranças ruivas de uma boneca que há muitos anos não está no quarto dela. Porque é que foi preciso que uma mulher que conhecia há um ano pusesse ao pescoço uma pedrinha azul para entender os traços das suas mãos, e porque é que os traços dela ainda desenham o meu coração, tantos anos. Porque é que chorei na Missão Impossível e no Demolidor e não chorei no Cinema Paradiso nem no Green Mile.

Ah, e durante anos confundi tudo isto com o amor. E é verdade que o amor está aqui presente. E confundia-me que tocar fosse antes de mais uma forma de ler coisas apagadas, como fazem aqueles que querem decifrar inscrições esquecidas em túmulos de pedra. Tantas coisas para pensar, tantos outros em mim.

Ainda não sei bem o que sou. Mas descobri que não sou tudo o que trago cá dentro. Passei estes dias assombrado por uma morte que pressenti, assombrado por umas mãos que têm a forma de um grito. São formas de conhecer, formas de amar. E que fazem inúteis as palavras e que fazem desnecessários os gestos. Sim, todos os outros são abismos. Mesmo os outros todos de mim.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

"...o lugar do anjo habita no inferno"

Teixeira de Pascoaes

3/5/05 09:30  
Anonymous Anónimo said...

somos apenas regidos por dois sentimentos: o amor e o medo. Se deixar-mos que este último comande a nossa vida e se sobreponha ao amor, então enfrentaremos diariamento o caos interior.
Todos temos os nossos 'fantasmas' os nossos pedaços de coisas mortas em nós, os nossos demónios...temos que usar esse amor para lidar com elas e amestrá-los... A essência de tudo, está no Ágape! BB

3/5/05 16:19  
Anonymous Anónimo said...

é preciso quase sempre uma caminhada para nos abrirmos para o mundo, para começar a entrar no seu calor...para o compreender....e a melhor forma de isso acontecer é através das pekenas coisas...das mais belas...sim...continua....

4/5/05 00:30  
Blogger Goldmundo said...

Compreender?...
"And all I know for sure
All I know for real
Is knowing doesn't mean so much..."
(The Sisters of Mercy)

4/5/05 01:09  

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