26.4.05

Escuta-me



Estou aqui, sabes? Estou sempre aqui. Não vou embora, não te vou tocar. Não chores. Não fiques assim. Não te obrigo a falar. Não quero sequer que abras os olhos, e de qualquer maneira fechei as janelas e as portas, não há luz. Sossega. Eu estou aqui. Não, não te vou levar para lado nenhum. Tu sabes que não há lado nenhum, até foste tu que mo ensinaste quando perguntei para onde ias, donde eras. E não vou falar também, já não quero saber porquê. Sim, coisas a dizer. Talvez tivesse também, sim. Mas não agora, não agora, não enquanto soubermos tantas músicas, enquanto pudermos beber, enquanto puder ler as linhas quase apagadas das tuas mãos. Não é preciso, não é realmente preciso. Deixa-te ficar. E se quiseres diz-me tudo, tudo. Conta-me baixinho, como nas histórias de adormecer. Deixa-me ser eu desta vez a história de acordar. As coisas são coisas. As coisas fizeram-te assim, negro tão baço. És tão bonita. E eu também não tenho para onde ir, acho que as saídas estão cortadas. Lá fora as coisas devem estar a arder, os mundos ardem. Não sei quanto tempo temos, porquê? Não interessa nada, sossega agora. Dorme. Dorme tranquila como se fosses a própria noite a dormir. Eu estou aqui, fico quieto. Eu não te quero abraçar. Eu não quero a tua vida. Quero ir buscar os meus olhos ao fundo da tua história. Quero rasgar o resto da luz.

Escuta-me.

[pintura: Retrato de Emma Hobson,
de John Constable (cerca de 1806)]

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Há já uns bons dias que me apetecia escrever-te. Hoje passei aki. Senti como se me estivesses a chamar, de alguma forma. E deparei com este texto... Demasiado oportuno... :)
Sei que tás aí, embora estranhe o silêncio.
Lonellywolf

28/4/05 03:59  

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