1.5.05

Eu, os outros em mim (I)

Uma tarde, no gabinete onde uma amiga trabalha, comecei a sentir um desconforto impreciso que não tinha nascido da conversa, nem do silêncio. Devagarinho, o desconforto começou a tomar a forma de uma solidão azul. E soube que tudo vinha do mapa na parede atrás da mesa dela, uma reprodução grande de um daqueles mapas-mundo antigos. Perguntei-lhe como conseguia ela trabalhar assim, "esse é um mapa gelado", disse-lhe. O desconforto fez-se ameaça como se alguma coisa tivesse acordado.

É bom ter amigos eruditos. Ela explicou-me que sofria de "..." (não fixei a palavra, e ainda me não deu para a procurar), um fenómeno conhecido da psicologia, uma mistura neuro-sensorial. Haveria pessoas a achar que o cor-de-rosa é salgado, ou que o toque da pedra cheira a maçã. Eu achava que os mapas eram gelados, porque para mim esse seria o sabor do cinzento. Não há cura conhecida.

Não lhe expliquei que "gelado" não era um sabor mas um arrepio, e que não era só do cinzento que estava a falar. Mas sim, as coisas misturam-se em mim de uma maneira estranha. Isso ajuda-me a escrever, mas faz com que o que quero realmente dizer fique escondido no turbilhão das palavras. Para ser claro e rigoroso (e consigo sê-lo) preciso de muito mais tempo do que o que tenho para a Ribeira; o que faço aqui são quase sempre esboços feitos à pressa, coisas que tenho de fazer sair. Mais tarde leio-as e tento entendê-las.

Falo disto porque ontem, no livro que ando a ler (tenho de falar dele) encontrei uma coisa que me assustou. É uma história de fantasmas, do melhor que vi. E é dito que algumas das pessoas mais sensitivas experimentam exactamente essa mistura de sensações ("mistura" não é a palavra adequada): "é como se vertigem fosse limão desfeito em tristeza".

Ora, eu não sou "sensitivo" no sentido da vidência ou da propensão para coisas "extrasensoriais", embora tenha já sido encontrado por fantasmas e assistido a "coincidências" bem estranhas. Mas, com algumas pessoas e com alguns objectos ou sítios, é-me impossível não entrar numa empatia imediata fortíssima. Olho para alguém e apanho um choque de sensações que não podem ser descritas senão da maneira que uso para escrever aqui. E são sempre coisas tristes (uma vez, há muito tempo já, escrevi aqui "gosto das pessoas que têm algo quebrado por dentro", e só agora consigo explicar um bocadinho o que queria dizer com isso).

Se isto for verdade, a minha "tristeza" ou "melancolia" não é uma "depressão" no sentido vulgar (sempre pensei que não): mas vem-me de encontrar coisas, e pessoas, com quem entro nessa estranha forma de empatia que ganha imediatamente todas as cores e todos os sabores da tristeza. As coisas alegres, a alegria dos outros, aprecio-as objectivamente, mas não neutralizam nem compensam isto que entra em mim e de que esta Ribeira é feita.

Tenho de pensar mais nisto. Por hoje não tenho mais tempo.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Sou assombrada
todos os que cá entram fogem lívidos de medo...
mas não saem de cá...

2/5/05 13:08  
Anonymous Anónimo said...

Que texto tão bonito (o segundo parágrafo, que beleza)!

2/5/05 17:40  

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