22.5.05

Tempestades



Porque ficas sempre a sorrir, disse ela, como se o que eu digo tenha piada? Eu estava a falar de coisas sérias, tristes. Nem sequer estás a escutar. Ele tentava ouvir, havia música e barulho de copos e gargalhadas ao fundo, e olhava-lhe os lábios para a ler, os olhos de pássaro ferido ou águia real. Sorrir? Não é verdade, tentou dizer, o que me disseste não tem piada nenhuma. Estou a sorrir porque estás aqui, tão bonita. Estou a sorrir porque não sei. Mas as palavras ficaram presas, como quase sempre acontecia. O sorriso deve ter-se apagado um bocadinho. E ela já estava a dar a resposta firme (porque é que nisto és igual à Catarina? Também ela se enervava comigo, devo ser eu que sou igual): És mesmo assim, é a tua cara, não é? A minha cara, pensou ele, pois. Às vezes gostava de ser mais bonito. Mas ela já se estava a levantar, e ele já estava a pensar noutra coisa, não há palavras para te contar. E o que me contaste dói mais que as coisas minhas que doem. Não há-de ser sempre assim, não desistas. O que me contaste não pode ser a última história.

Tempestades, não é, e quando a chuva cai sem prevenir descobrimos às vezes que alguém ao lado chegou com um abrigo tão frágil, estou aqui. E a chuva desenha os contornos do corpo como nem o fogo sabe fazer, lembras-te da estátua da Vitória Alada, a roupa fina encharcadas que faz a pedra pulsar. Tempestades. Porque serei só eu a pensar assim?

E agora vou eu falar, como sempre que é tarde demais. Sabes, bebi tanto ontem, fez-me tão bem embora a cabeça ainda doa e os olhos estejam inchados. Estou tranquilo, embora nada tenha mudado, isto não está a funcionar tinha eu dito aqui da outra vez e isto era eu e a vida e os dias e até a Ribeira que parecia um riacho seco. E ainda nada funciona, só escrever já está comigo, beber é sempre a oração escutada.

Não há palavras para te contar. As pessoas têm palavras para as cores e para os traços, e eu podia dizer que o teu corpo é delgado e as tuas mãos são tão brancas. Mas isso era como falar de uma música e dizer "o oboé foi construído em Berlim, a harpa está à esquerda, entendes de que música estou a falar?" E tu não entenderias, e terias razão. Mas diz-me as palavras iguais ao Inverno de Vivaldi, à voz da Callas ou da Nina Simone ou da Diamanda Gálas, às guitarras a arder, a isto que faz o sangue correr. Diz-me as palavras imediatas. Não há, pois não, porque elas são pontes compridas como as que me disseram que há em Budapeste. São pontes entre as coisas, não as coisas e o canto frágil das coisas. As palavras são tão curtas.

E sabes, é por isso que eu estava a sorrir, vês como eu sou estúpido? Não quer dizer que não estivesse a chover (chover é a palavra que tenho para as lágrimas que não choram). Não quer dizer que não estivesse a pensar, e não, não tenho solução para tudo como uma vez disseste, não tenho solução para nada mesmo. Nem sequer para mim, e as minhas coisas são tão poucas ao lado do teu caminho a acabar. Escuto-te. Está aqui o abrigo que tenho, e tu sabes que é mais uma capa rasgada, a chuva e o vento iam rir-se de nós, arrancá-la das mãos e embrulhá-la à nossa volta até que deixássemos de ver. Eu sei. E por isso estou aqui e não faço gesto nenhum, palavra nenhuma. E de repente o vento deixou de me fazer medo. Quem corre na tempestade segue sempre o caminho mais certo. Só nos perdemos ao sol.

Não, não tenho como te ajudar. Disseste-me que trato mal dos meus gatos, e deve ser verdade. Não tenho esperança de ganhar um dia (já reparaste que se diz ganhar a vida para falar de dinheiro, que coisa tão feia. Ganhar a vida nunca serão os teus caminhos). Sabes, quando me vires sorrir não penses que estás a ver um homem contente, os homens contentes são tão sérios. O sorriso parvo que estranhaste era feito só de sentir. É como já não estar a olhar para a água, mas ter caminhado para a água, ter descido até ao leito mais fundo, água gelada, água negra. Não há palavras para te contar, nunca reparaste que sou quase cego. Eu posso dançar com a música mas não posso explicar a música senão aprendendo comigo os passos e os gestos da dança. E sim, as palavras com que me contaste as coisas misturam-se com a distância que os teus olhos têm sempre, com as tuas mãos tão quietas, com o teu desenho delgado. Misturam-se com lembranças e com cheiros e com farrapos de noite e o licor ardente que bebi e ao fundo a Siouxsie a cantar. E ergues-te na minha noite como uma pessoa inteira, e deixo de acreditar que a alma é uma coisa que brevemente se reveste de um corpo como se se abrigasse numa capa rasgada. Tempestades, sim. Tempestades no mar. Sorrir é a forma que tem a minha dança. E mesmo os mortos podem dançar.


[pintura: tempestade, de Pierre-Auguste Cot.
Pintado cerca de 1880. Está no Metropolitan, de New York]

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

os mortos dançam comigo todas as noites - abraço sorrido

23/5/05 13:11  
Anonymous Anónimo said...

Que lindo Blog!
Gosto e vou voltar sempre!

Um beijo,
Luz Dourada

23/5/05 15:41  
Anonymous Anónimo said...

Como é possivel alguem escrever algo tao triste...tao profundo! reflexos de uma alma aparentemente vazia?!O SOL BRILHA SEMPRE...é esta a forma que tem a minha dança

17/6/07 20:25  

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