Obrigado, barão Thyssen-Bornemisza. Deixaste-me ver (saberás disso, no sítio onde estás agora?) um Caspar David Friedrich, e foi o primeiro que vi (ah, e o "navio de pesca entre dois rochedos", mas este amanhecer já me tinha calado demais) e não sei se estou guardado para ver outros. Obrigado, rei e rainha de Espanha. Obrigado aos outros (aos outros todos) que de um modo e de outro me levaram aqui.
Aqui não se vê bem. Não se percebe a luz irreal que a lua espalha, nem que as árvores se debruçam sobre as caminhantes como se falassem baixinho, nem que nos vultos adivinhamos as três idades da mulher (Klimt...) e sim, a tripla deusa lunar. Não se percebe que não há caminho, ou que o caminho é sempre caminho de amanhecer de Páscoa, mesmo para os que não sabem de ressuscitar. Não se vê bem, não se percebe. E é isso que tem a arte maior, fazer-nos sentir a falta de tanta coisa deslumbrada, fazer-nos saber que o que vemos é apenas o princípio da beleza que é o princípio da verdade. E que a verdade nos olha como se andasse à nossa procura desde o instante da fundação do mundo.
E por isso, como em tantas outras pinturas de Friedrich, as silhuetas humanas estão voltadas de costas, para não nos distrairmos nas imperfeições dos rostos. Para sabermos que os passos andados são sempre já passos andados por mais alguém, mesmo no fim da noite tão fria. Para sentirmos que também estamos de costas para os outros todos, porque é assim que estamos sempre e também é por isso que ninguém adivinha que choramos. São as costas que carregam a Cruz. E já percebes porque é que as três mulheres não estão no meio do caminho. Não estão ali para atrapalhar, e assim o invisível tem mais espaço para se alargar. E podemos sempre desviar os olhos.
É tão estranho. É raro chorar junto das pessoas, é raro chorar por causa delas. Mas as lágrimas estiveram comigo em Madrid junto deste quadro, como há tantos anos tinham estado em Paris, diante do corpo frágil da Camille Claudel esculpida por Rodin. (Um dia hei-de falar da imperfeição e da lua e do fim das coisas inacabadas, mas este não é o lugar apropriado, agora não).
E quero dizer outra coisa: nunca gostei de ti enquanto vivias connosco, velho barão Bornemisza. Eras demasiado rico. Mostravas-te demais. Sempre te vi como um traidor à nobreza onde nasceste, na tua felicidade barulhenta feita de iates e festas e risos falsos de uma Espanha atordoada. Um aristocrata não ri muito alto, sabes? Um aristocrata partilha com os vampiros o segredo de se não mostrar. E o teu pai, o homem mais rico da Alemanha durante a Guerra, de quem se dizia que manteve as fábricas a funcionar com trabalho escravo de prisioneiros e foi acolhido pelos ianques no fim porque o Império tem razões que não se contam nos livros de História? Não gostei de ti, não. Mas não é isso o que mais importa. Também tu andavas pelos caminhos do amanhecer de Páscoa, e talvez andasses sozinho no meio do teu oiro inútil. E de ti ficou para nós (para mim) a indescritível beleza da arte que recolheste. Ficou este Caspar David. Ficou este bocadinho que deixo aqui. Descansa em paz, barão, e que a tua alma possa hoje saber das noites de Maio. Uma noite hei-de ser eu a encontrar o caminho amanhecido da Páscoa.
[pintura: Amanhecer de Páscoa, de Caspar David Friedrich.
Colecção Thyssen-Bornemisza: Madrid]
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