8.5.05

A terra do fogo



Terra do fogo, cidade vermelha, Madrid. Dois dias e duas noites para respirar e sentir e escutar uma cidade como tão poucas vezes tenho podido fazer. Muito pouco vi, tanto soube. São assim todas as paixões.

Há coisas estranhas numa cidade que não é antiga, numa cidade longe do mar? Deve haver. Não é a pedra, mas a celebração da pedra, não é a vida mas o canto pleno da vida. Coisas contentes. E comovi-me a ver pela primeira vez a pintura do meu Caspar David, e ainda por cima era o Amanhecer de Páscoa e não sabia qual ia encontrar. O tempo estava contra mim, atravessei sem olhar salas e salas de pintura como se estivesse a correr a máquina do tempo (parei duas vezes só, um Cristo assombroso e uma paisagem romântica feita de rochas e de água e de uma lua impossível mas não fixei o nome de quem soube fazer cantar assim a tinta e o sangue) e de repente estava ali um quadro pouco maior que um caderno que iluminava a sala e me deixou quieto como se tivesse chegado ao fim.

Trouxe comigo a frase que estava na capa vermelha de um livro usado: "La realidad es lo que te queda cuando ya no crees en nadie", a realidade é o que te fica quando já não acreditas em nada. Trouxe comigo o negro que havia no fim da noite que procurei (Dark Hole). Trouxe árvores com flores, e anjos no cimo de torres douradas, e a Iglesia de la Real Hermandad de San Antonio de los Alemanes, e o sabor do gelado de violeta que era da cor dos olhos da rapariga que me deu um café na Plaza Dos de Mayo, e grafittis e caixas de cartão vazias na Calle de San Esteban (quatro da manhã e não me apetecia voltar). Trouxe tudo o que levei, e as coisas trazidas deixaram-me mais leve. É bom ter visto Madrid. É bom ter visto seja o que for.