ribeira - Isto não vai adiantar. Não vais ter tempo para a Maré Negra. Desiste.
goldmundo - Já desisti de muita coisa. E não me interessa se não tenho tempo. Nada me obriga a escrever.
ribeira - Não te sentias bem aqui? Eu tratava-te bem.
goldmundo - Sei. [um silêncio] Não é isso. E não vou sair daqui.
ribeira - Ao menos sabes o que vais escrever lá?
goldmundo - Não. [um sorriso] Também não sabia nada quando te comecei.
ribeira - Para escrever o que não sabes basto eu. Bastam esses blogs por onde passas. Sempre foi assim, e estava tudo certo. Não percebes o que está a acontecer?
goldmundo - Não está a acontecer nada.
ribeira - Tu andas zangado. Queres que te diga? Andas zangado e isso põe-te mais frio e voltas aos teus livros e à internet e queres alguém em quem descarregar.
goldmundo - ...
ribeira - Foste tu que disseste, logo no princípio: "que os mortos enterrem os seus mortos". O que é que interessam as histórias do Império e da política...
goldmundo - [interrompendo] Não é política.
ribeira - O conhecimento é uma forma de poder. A política é o poder sem o conhecimento. E no fundo isso não interessa nada. Interessa que te vais irritar e perder tempo.
goldmundo - Ler um jornal irrita-me. Há muita coisa que me irrita.
ribeira - Vês?... Logo agora. Agora que estás a meio. A meio de perceber quem és, de perceber o que é isto tudo. Quem é que quer ouvir falar do Bush? É mais importante o que dizes aqui. Eu sou mais importante.
goldmundo - És sim. Eu não sou a maré negra. [um sorriso muito rápido]
ribeira - São as coisas que nos fazem a nós, já não te lembras? Tu vais ficar igual à maré negra. Vais acabar a falar sozinho ou a discutir secas com gente seca. O mal é insaciável. A luta com o diabo acaba na cama.
goldmundo - Não é mau falar sozinho, ribeira. Estás com ciúmes?
ribeira - Não. Claro que não. "eu sou a ribeira negra, e as luzes de néon não me sabem tocar".
goldmundo - Ninguém te sabe tocar.
ribeira - Não. Mas eu toco todos os que aqui passam. E é isso o que te irrita, não é?
goldmundo - Não me venhas com isso agora.
ribeira - [franzindo os olhos] Não? Posso contar a verdadeira história?
goldmundo - [acende um cigarro] Podes. Até que enfim.
ribeira - Eu não conto as coisas sem ti, gold. Tu és a ribeira mas eu não sou o gold.
goldmundo - Já falámos sobre isso. Já escrevi coisas lindíssimas sobre isso. Conta lá a história.
ribeira - [um silêncio] Tu vais fazer o teu típico joguinho. Falar da realidade para fugir dela. Falar do Bush e da crise económica e do analfabetismo e das catástrofes todas que achas que vêm aí...
goldmundo - [voz um pouco mais alta] Eu não acho coisa nenhuma. As coisas estão à vista.
ribeira - ... para não teres de andar mais um bocadinho para dentro. Para te tranquilizares com a inteligência das coisas que dizes, com o cinismo e a ironia que disseste que não querias trazer para aqui. Não gostei nada da brincadeira do Jabba, sabes? "Menos tentação". Aliás já fazes isso noutros lados. Deixa de brincar aos robots. Deixa de brincar com puzzles. Não faças guerras antes de...
goldmundo - ... "antes de te venceres a ti próprio". Agora pareces o Paulo Coelho, ribeira. Eu sempre fui assim, e sabes disso. O "goldmundo" é apenas uma das metades. Sou gémeos, eu. Este lugar é lindíssimo, cheio de buganvílias e de rosas bravas e de silêncios e de quadros do Caspar David. Um lugar negro que cheira a flores, onde é que já se viu? Mas os sítios com flores estão sempre cercados por muros. Como estava a minha casa em miúdo. Já falámos disso também. Vivia sozinho e dava voltas pelo jardim de bicicleta contando-me histórias que eram sempre histórias de reis e de batalhas e de viagens e de liberdade. Mas só andava de bicicleta dentro daqueles muros, e o muro mais alto era o que tinha as buganvílias.
ribeira - Pois era. E agora queres viver mais uma dessas histórias idiotas. O cavaleiro que derrotou a maré negra. O teu problema é não distinguires viver de ler. Ou de pensar.
goldmundo - ... eu sei. Porque é que toda a gente me anda agora a dizer isso?
ribeira - Ninguém te disse isso, gold. Vês? Tu é que leste isso no que te disseram. Em vez de responder. Nunca vais quebrar este círculo.
goldmundo - ... ia dizer "só tu o podes quebrar". Mas se dissesse isso dava-te razão. [um cigarro]
ribeira - Larga-me, gold. Larga-me ou perdes-me. As coisas acabam.
goldmundo - ... uma vez saltei o muro alto, lembras-te? Subi as escadas das buganvílias, sentei-me lá em cima e depois saltei. E virei a esquina. Foi a primeira vez. Estava sozinho, não via a minha casa e ninguém sabia que eu não estava lá.
ribeira - e...?
goldmundo - Bem, senti que a estrada nunca acabaria. Podia andar até ao fim do mundo. Podia acontecer tudo e mais alguma coisa. Foi bom saber isso. Mas não queria ir a lado nenhum em especial. Por isso voltei. E fui para o ramo alto da japoneira ler um livro qualquer sobre viagens.
7 Comments:
Estou a ver que a esquizofrenia se pega. :)
Deixa estar o maré negra, e escreve só quando te der vontade. O Império não é uma fantasia, é uma realidade brutal. Mas nós somos pequenos para enfrentá-lo sozinhos. Estou certa de que, com o tempo, mais pessoas irão aperceber-se dele.
Vera
Pega sim. Já agora: o que é que tu fizeste à VERDADEIRA gotika, hum?
Fiquei verdadeiramente impressionada com a coragem do teu eu x eu diálogo! Que coragem Gold!
Dá para pensar...e muito...Estou como a Ribeira; gosto mais dela! A outra tem fronteiras, ela não...
Sabes caro Gold. descobri com esta tua ribeira que há um tempo para ler viagens, e há tempo para saltar os muros e as fazer... e resta ainda tempo para ler as viagens enquanto as fazemos...
já tens a árvore, o livro, e os filhos... só te falta uma pedra "onde reclinares a cabeça" para que a Ribeira e a Maré te mostrem os outros tons e cores que ainda não vês!
Se estás cansado no teu caminho, só tens que descansar um pouco para continuar a jornada...
Todos nós os vemos daqui de fora, os tons, as cores que já tens... olha!!!... quantos caminhos "até ao fim do mundo"... quantas tonalidades ainda por dizer...
Se estás zangado zanga-te... se queres sorrir... sorri... sorri muito!!! de todas as maneiras...
A Ribeira nunca pára... a maré também não...
deixa-as correr... há tempo... todo o tempo "até ao fim do mundo"!
... li devagar o que me disseram.
Eu sou a verdadeira, una e imutável. Vão passar a ter de me reconhecer pelo estilo porque o troll não desiste. Isto requer mais atenção da parte dos leitores.
Tenho para mim que a maioria das pessoas não são estúpidas, mas, pura e simplesmente, não prestam atenção.
Mas isto são contas de outro rosário.
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