17.7.05

As I write (part two): Fragmentos de uma autobiografia não autorizada

Fui educado por uma mãe católica, e fui baptizado em criança. (09.04.04)

Sabes, ninguém de fora me moldou. Em criança fui precoce, o que é uma maldição, e fui-o sozinho, o que é uma impossibilidade. Cresci numa casa enorme e vazia, onde os limites eram só os muros altos do jardim e onde aprendi melhor as árvores e os livros do que as pessoas e as vidas. Ninguém me mostrou afecto, mas ninguém me impôs violências: hoje creio que tudo isso teve por causa, só, uma distracção perdoável dos adultos. Mas nunca me socializei, como hoje se diz; não andei em jardins infantis, não brinquei com os primos mais velhos, uma intermitente bronquite dispensou-me das aulas do colégio onde ocasionalmente tirava fotografias com a turma antes de levar para casa as melhores notas. Aprendi a ler com três anos, sozinho; aos sete ter-te-ia podido dar a lista dos reis de França e o nome das maiores cidades da Austrália; mas era demasiado novo para entender os romances, e ninguém me ensinou as regras que regem veladamente as relações dos homens. As outras crianças eram para mim, apenas, uma inofensiva estranheza. (02.03.05)



Agora presta atenção. Eu não sou uma criança como as outras. As outras, até, só soube delas neste dia de chuva em que o Pai me levou ao Colégio a primeira vez. E ainda não sei como são. Gritam e não estão quietas e (como é que conseguem?) portam-se como se nenhum Crescido ali estivesse. E andam ligadas umas às outras, estes começaram a esmurrar-se como se se conhecessem muito bem e aqueles conversam. Talvez tenham estado aqui ontem a ensaiar e o Pai se tenha esquecido de me trazer. Aqueles senhores ali são Padres, uma vez li que é pecado olhar para trás na missa, e eu olhei. Os sapatos é que me apertam. (02.04.04)



Não tive nunca um cavalinho, e um cavalinho foi a primeira coisa que me lembro de não ter tido. Não, não é bem isso: nunca tive um cavalinho, e lembro-me de o não ter tido porque, a certa altura, houve um cavalinho feito de palavras, um cavalinho inquieto dentro de mim. Toda a minha vida foi assim, e talvez seja assim a vida de todos os outros. Não encontramos aquilo que não deixamos ir embora, não temos aquilo que anda sempre cá dentro. E depois há as coisas que não damos por ela. (05.05.05)



Tive, na generalidade, uma adolescência tranquila depois de uma infância muito estranha. Em criança vivi sempre sozinho, e habituei-me a viver assim. Quando pude começar a sair, aproximei-me de algumas pessoas como aqueles cãezitos que abanam a cauda, e fui quase sempre bem recebido. De modo que não passei por "crises" e "revoltas". Era politicamente radical (muito) mas era um intelectual afável. O bicho estava vivo cá dentro, no entanto: coisas como o divórcio dos meus pais, a que quase não liguei, deixaram coisas por dizer, e coisas por sentir. (20.04.04)



Fiz todos os disparates do mundo depois disso. Achei que não devia ter nascido. Revivi a vida toda à procura de erros meus, dos outros, do destino. Culpei toda a gente, e culpei-me a mim. Entrei numa greve geral de viver. E por essa altura estava mergulhado num mundo feito de pessoas ambiciosas e importantes, um mundo feito de poder e de negociação, um mundo feito de adultos sérios. Achei o jogo imbecil e quis virar o tabuleiro. Mas não fui capaz de dizer aos meus filhos, "desculpem, afinal quero ser punk". Não fui capaz de dizer nada. Ainda hoje muito pouco digo. (20.04.04)



Tenho quarenta e dois anos, e durante dez andei morto, durante outros tantos perdido. Casei-me aos vinte e dois, mas essas são contas fáceis demais. Tive uma vida feliz mas as coisas não correram bem. Outro qualquer tinha feito tanto com as jóias que deus me pôs na mão ao nascer. Os meus filhos não sabem que cada dia é para mim uma morte, acham-me um pouco estranho talvez. Cada dia que passa me sinto mais velho, e não são saudades da juventude, é o sentir que um dia o dragão será mais forte que eu. Um dia o meu medo será mais forte. Um dia farei um movimento errado com a espada que me resta que é a espada do pensamento frio. (23.08.04)



Tenho comigo uma canção, e tenho comigo o silêncio de todos os barcos naufragados. Tinha preferido não ter olhos e não ter alma que neles se espelhasse. Tinha preferido que no mundo não houvesse livros, nem estátuas, nem igrejas, nem rosas bravas. Tinha preferido não ter chegado tão longe, sempre tão perto de sítio nenhum. Mas agora é tarde, muito tarde, tarde demais. (30.06.04)



Eu vi e ouvi estas coisas, e vi outras coisas assombrosas. Vi o Bem e o Mal. Andei por tantos lados, sim. Ouvi do seio de uma multidão de três mil pessoas sair o canto a que se chama "cantar em línguas", e as línguas são, dizem, o canto dos anjos, e dos homens sei eu que não é ele feito. Ouvi histórias de apavorar. Dormi em casas assombradas, e vi as coisas que as assombram. Vi coisas no espelho que não deviam lá andar. Vi rostos tão puros como o da órfã do Delacroix. Vi a minha filha quase a morrer. Toquei toda a beleza, toda a perfeição que um corpo pode dar, toda a tristeza que um corpo pode receber. Vi, ouvi, toquei, senti. E o meu coração continua feito de pedra. "oh tu que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos" (S. Paulo). Pois, porque me não ergo eu, a quem foi dado ver todas estas coisas? (13.01.05)



no fundo de mim há um medo informe, como uma aranha que aguarda. Não sei ainda quem é esse eu aracnídeo. Uma noite enfrentá-la-ei (29.05.05)



Ando há dias por uma floresta com lobos. Talvez seja um só. E vai comigo onde eu for. Tecnicamente é a agudização de uma depressão, um estado de alta ansiedade, um desequilíbrio químico que os antidepressivos e um sono induzido tentarão combater. Mas subjectivamente não há estados químicos. Há uma floresta com lobos, talvez só um. Há o mundo a uivar cá dentro. Há aqueles barulhos que nos fazem preferir as boas salas de cinema quando vamos ao cinema, cada barulho perfeitamente distinto, perfeitamente ameaçador (as vozes são o pior).

Tenho medo dos lobos, tenho medo de andar (durante dois dias não consegui andar de metro sequer, ainda ontem de repente não conseguia estar numa loja, mas também não em casa, não na rua. Se dormisse o lobo ia embora. Se dormisse até voltar a ser uma criança pequena, na minha casa sob a lua. Se acordasse de andar acordado assim. (03.10.04)




Acho estranha a preocupação com "sermos nós próprios". Como se pudéssemos ser outra coisa. (29.05.05)



Não sei porque é que as pessoas acham que sorrir é parecido com rir. É como dizer que amor é parecido com sexo. (29.05.05)

Não sei como escrever que estou a sorrir e um bocadinho triste. (31.08.04)



[fotos de Patti Smith. C'est tout]

7 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Goldmundo és terrívelmente bonito!!!! sabias??

Gostava que estivesses aqui deste lado para te veres... verias como és "tocado" por um golpe grande de Beleza que só pode vir de Deus (e se acreditas na intuição feminina-como sei que acreditas - tens que acreditar no que te digo!)

Sinto que para mim é um privilégio andar por aqui... considerar-te um amigo (cada vez maior)!!!ver-te crescer tanto... tanto...

um abraço grande de uma amizade, que apesar de "semi-virtual" considero genuína e pura!!

Gosto muito de te ver crescer... e não imaginas como me tens ajudado a crescer também!

18/7/05 13:36  
Anonymous Anónimo said...

Sophia, as fotos são da Patti Smith :P

18/7/05 15:07  
Blogger zazie said...

o que é preciso é fé. Eu também gosto muito do Ribeira Negra. Só não tenho grandes esperanças que os joelhos permitam grandes crescimentos dos 30 em diante... mas enfim. O que é preciso é esperança.

E também acho que o nosso Goldmundo é muito fotogénico

":O.

18/7/05 15:57  
Blogger maria said...

Gold,
gosto muito... do teu lado feminino.
Nessa troca de maçãs, espero que a serpente não fique com a melhor parte. Eheh, agora vinguei-me.

18/7/05 16:48  
Anonymous Anónimo said...

Maçãs golden...?
;)

18/7/05 17:49  
Blogger maria said...

Essas mesmo!...

18/7/05 17:56  
Anonymous Anónimo said...

Oh Goldmundo, estava a reparar! Tu gostas mesmo de fruta hein??

Cerejas, diospiros... maçãs golden...

Este blog é "muita fruta"!!!!
Aliás é uma salada de frutas!!! he he he

(hoje tou sem inspiração só digo palhaçadas he he he... apetece-me...)

19/7/05 12:51  

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