5.7.05

Contradigo-me?

Da porta de minha casa sai uma estrada alcatroada que conduz ao Kremlin, em Moscovo. Este pensamento assustava-me quando era pequeno: os caminhos estão todos traçados, já só temos de seguir as placas benevolentes. Não é fácil perdermo-nos; mesmo que não saibamos onde estamos, há-de haver algures um mapa que o diga.

Nem sempre foi assim: todos os que ainda tiveram de ler Garrett no Secundário (eu chamo-lhe Liceu...) se recordam da ida de barco de Lisboa a Santarém, dos perigos do pinhal de Azambuja com os seus ladrões e os seus medos. Não havia estradas para os sítios todos; não havia mapas assinalando os hotéis. Não havia sequer telemóveis...

Habituamo-nos a pensar que o mundo das ideias é semelhante ao mundo das estradas. Há-de haver sempre um raciocínio lógico que, partindo da nossa porta, nos conduza aonde quisermos ir, por estradas lisas e sem ladrões. Há-de haver sempre uma ideologia que, como o Mapa da Michelin, nos diga que estamos a cem quilómetros à direita de Marx ou na auto-estrada que conduz a felicidade-city. Há-de haver um romance ou um filme que conte a nossa história, e alguém em qualquer lado que nos tenha já compreendido mesmo que nunca nos tenha visto. É possível ir da minha preocupação com a guerra no Iraque até à decisão moral que me preocupa neste momento sem contradições e sem abismos, que é como quem diz sem pedaços de floresta virgem que nenhum satélite fotografou.

As coisas não são assim. E não é porque sejamos nós os complicados: é o mundo que não tem uma só dimensão, que não tem tamanho que caiba num único mapa. Walt Whitman, que foi um dos grandes poetas americanos do fim do séc. XIX, disse qualquer coisa como "Contradigo-me? Muito bem, então contradigo-me. Sou grande. Contenho multidões!". Mas talvez seja ainda mais estranho que isso: é o mundo que se contradiz, é o mundo que contém em si a multidão dos mundos. Não, não há um mapa de estradas, e não é porque ninguém se tenha lembrado de o desenhar. É porque não há papel onde ele caiba.

É estranho eu escrever isto. "Contradigo-me?"...

12 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Quem não se contradiga: "Que atire a primeira pedra!"
M. Conceicao

6/7/05 10:41  
Anonymous Anónimo said...

(isto não tem a ver com este post... ou será que tem?)

Sinto por aqui uma ausência há já algum tempo! - onde andas lonellywolf?

6/7/05 13:56  
Anonymous Anónimo said...

"Don't cry wolf", Sophia :)

6/7/05 14:11  
Anonymous Anónimo said...

ah ah ah!!!!(isto sou eu a "gargalhar" do teu (sor)rir do meu suposto chorar!) :)

6/7/05 18:39  
Anonymous Anónimo said...

:) sorrio com facilidade, sim...

6/7/05 18:59  
Anonymous Anónimo said...

que bom!!

6/7/05 19:04  
Anonymous Anónimo said...

Já julguei que sim, já tive dúvidas. Descobri que há pessoas que pensam que não estou a levar a sério o que me dizem, coisas dessas. Muitas vezes sorrio quando estou a ficar triste, quando vejo a fragilidade das coisas e das vidas. Não é para brincar. É como se olhasse para um bébé. Quando me apetece pegar ao colo no mundo todo.

6/7/05 19:09  
Anonymous Anónimo said...

que bonito!

olha eu gosto deste teu sorriso mesmo sem o estar a ver!!

Acho que te percebo... também sorrio e às vezes sou mal interpretada... prefiro o "silêncio habitado" de um sorriso do que o vazio da maior parte das palavras...

6/7/05 19:16  
Anonymous Anónimo said...

Tudo está, acho, em que para algumas pessoas sorrir é um rir pequenino. Para outras (como eu) são coisas inteiramente diferentes...

6/7/05 20:00  
Anonymous Anónimo said...

sim concordo!

6/7/05 20:06  
Anonymous Anónimo said...

O papel está dentro de nós e é infinito. Vai sendo escrito à medida que crescemos como seres humanos...

7/7/05 10:09  
Anonymous Anónimo said...

.. concordo, Luz. Eu queria dizer outra coisa. Mas nao consegui ser claro, mais uma vez.

7/7/05 22:15  

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