"Assumir a responsabilidade é o primeiro passo da maioridade. Cresçam.
Aceitem o castigo. Acabem com a impunidade. Paguem as multas. Párem no sinal vermelho. Cumpram o código da estrada. Paguem os impostos. Não deitem beatas na areia. Não peguem fogo às florestas. Não copiem nos exames. Não gastem acima das possibilidades. Sejam honestos. Párem de fazer favores. Não aceitem cunhas."
Isto diz a Gotika, e por trás disto está uma coisa mais complicada. Fala ela do "estado do país", de coisas como governos e férias de governantes e incêndios de verão e fugas a impostos. Verdade. Só que as coisas têm raízes fundas.
Há trezentos anos atrás, ou um pouco mais, aconteceu uma coisa estranha em algumas regiões da Europa. Ninguém sabe o verdadeiro motivo. Já se tentou explicar isso por serem as regiões onde havia liberdade de expressão, onde os Estados não usavam a Igreja Católica como quem tira as castanhas do lume com as patas do gato (falo da Inquisição, que não foi "medieval" como se costuma dizer, mas "moderna"); por os judeus estarem presentes, em vez de expulsos e clandestinos como na Espanha e Portugal; já se explicou até que o tempo frio faz bem aos miolos. Não sei qual seja a razão. Essa coisa estranha é o aparecimento de um tipo de sociedade em que as pessoas desenvolvem, conscientemente, regras de comportamento que não tem como justificação o medo à polícia ou à inquisição ou ao rei. Regras simples, como a de trabalhar à semana e beber só aos sábados. Regras simples, como as que permitem enriquecer. A pontualidade, que nós achamos uma "excentricidade inglesa" e compensamos com histórietas árabes para quem Allah é o senhor do Tempo.
Eu penso que o protestantismo teve um papel importante nisso, uma vez que induziu as pessoas a aprender a ler - para ler a Bíblia. Mas deve ter havido mais coisas. Mistérios da História.
Nos dias que se seguiram à derrota de Hitler, com Berlim em ruínas e as tropas inglesas, americanas e mongóis (os soldados soviéticos que entraram na Alemanha às ordens de Estaline eram basicamente mongóis, para se não sentirem "próximos" do povo derrotado...) patrulhavam a cidade, um capitão inglês da força aérea fazia uma madrugada um voo de rotina. Viu um bairro bombardeado, viu uma fila de pessoas paradas no meio das ruínas. Avisou os comandos militares. Foram ver. Bem, a fila de pessoas tinha na mão declarações de impostos. Aquele lugar tinha sido a Repartição de Finanças. No topo da fila, numas tábuas improvisadas, estava um funcionário, ou melhor (nesses dias não havia sequer Estado Alemão, que tinha sido dissolvido pelos ocupentes), um ex-funcionário das Finanças, com ar grave a recolher papéis e a entregar recibos. Os berlinenses não viam relação entre a derrota na Guerra e não cumprir uma coisa que lhes tinha sido pedida, ou ordenada, para aquele dia, para aquele preciso dia. Berlim demorou quinze anos, ou menos, a tornar-se de novo uma cidade rica.
A questão de observar ou não este tipo de regras (as "regras informais", não aquelas que estão na Lei, ou não apenas essas), e da relação entre isso e o desenvolvimento das sociedades tem sido estudada com muito interesse pelos teóricos do liberalismo (que precisamente não querem que a sociedade dependa do Governo para ter regras). Tem-se chegado à conclusão de que há basicamente dois modelos de sociedade, e de que esses modelos assentam numa diferente percepção da "confiança": num, as pessoas só confiam na "família" e nos "amigos". A confiança vem no sangue herdado ou no sangue da aliança masculina. É fácil ver aqui o modelo das Mafias. Mas é também o modelo que leva às "fidelidades partidárias", às declarações emocionadas dos patrões do futebol, às empresas em que o filho vai suceder ao pai e ao avô, ao modelo das cunhas e dos favores. Os autarcas da corrupção não estão onde estão por "oprimirem" o povo. Pelo contrário, fazem permanentemente favores a toda a "sua gente", mesmo que não conheçam pessoalmente a pessoa. É um modelo feudal. Estamos seguros, mas a segurança depende do poder do "chefe".
No outro modelo, as pessoas associam-se livremente segundo os seus interesses, e por isso encontram permanentemente desconhecidos em quem confiam sem ter razões de "sangue" para confiar. Não é por acaso que na Inglaterra ou na Alemanha ou na Holanda (que foram o motor deste novo mundo) se multiplicaram os "clubes", mesmo que sejam de caçadores de raposa, de coleccionadores de selos ou de arqueólogos, de "senhoras casadas" ou de "caridade". Não é por acaso que a organização não-hierárquica das igrejas protestantes facilitou um sentido de pertença à "comunidade" que as paróquias católicas nunca estimularam.
A diferença fundamental é que no caso da Mafia (que é o caso português), as regras existem porque Deus ou o Chefe ou a Polícia as impuseram. Não se diz "cumprir" ou "observar" as regras mas sim "obedecer" a elas. No caso "europeu" (que é também o japonês) as regras existem porque são caminhos para ajudar a atravessar a floresta. E não interessa quem o abriu, mas aonde ele nos leva.
Que é possível migrar de um modelo para o outro prova-o a Espanha dos últimos quarenta anos. Não é Governo que muda isso por decreto-lei. Não são os políticos, nem o ódio aos políticos, que aqui servem para alguma coisa. A caridade bem ordenada começa por si mesmo, diziam os antigos católicos. Quantos de nós se comandam a si mesmos o suficiente para viver segundo regras? (lembrei-me agora do filósofo Kant, de quem se dizia que a sua passagem diária a caminho da Universidade fazia ACERTAR O RELÓGIO DA IGREJA...). E, claro, para sujeitar essas regras à comparação com as regras do vizinho, não para o destruir a ele (vizinho) mas para as destruir a elas (regras) substituindo-as por outras mais ágeis ou eficientes ou úteis ou claras ou simples ou "boas"? Os jornais de ontem diziam que os portugueses gastam dois por cento do seu rendimento no Euromilhões. Quando gastarmos dois por cento do nosso tempo numa associação qualquer (uma igreja, um clube de coleccionadores de borboletas, uma associação cívica) as coisas começarão a dar os seus frutos.
É claro que não acredito que isso vá acontecer algum dia. Pelo menos, antes do colapso total da sociedade que conhecemos - o que para mim quer dizer, antes de 2015 ou 2020.
(isto deveria estar na Maré Negra, talvez).
9 Comments:
Interessante.
Só é pena que só uma minoria de pessoas conheças estes factos (minoria a qual tu e eu pertencemos) e a maioria nunca saiba porque é que as coisas acontecem.
Ditadura, tens razão, também aconteceu em Espanha, e já é tempo de parar de pôr as culpas da ignorância do povo português no Salazar.
Eu simplesmente não acho que sejamos atrasados. Só se considerarmos como índice 100 o modelo de desenvolvimento capitalista. Não é o único, há outros. Durante séculos, o dinheiro não importou um caralho, a felicidade conquistava-se no Além à custa dos sacrifícios terrenos. Nisso, os portugueses foram desenvolvidos e os holandeses, p. ex., estavam na cauda da Europa. Eles mudaram o critério de referência e ficaram à frente e nós na cauda. Nós, burros, lembrámo-nos agora, pela voz do Sócrates (nunca um nome foi tão irónico) de começar a fazer Nokias como quem faz colheres de pau para ver se nos chegamos à frente. 'Tá mal, temos é que fazer como eles fizeram, i. é, mudar o paradigma de desenvolvimento. As linhas são estas: consciência ecológica, valorização do alternativo, modelos multiculturais, tolerância, ambientalismo, dedicação ao 3º mundo, diálogo N/S, regionalismo, valorização da microescala, anti-carro, etc.
Excelente análise Gold. É particularmente elucidativo o exemplo dos alemães, com o seu país semi-destruido, pela demência criminosas dos nazis (e também pela dos "aliados", não esquecer os bombardeamentos assassinos contra a população civíl como o de Dresden, pela RAF)a cumprirem as suas obrigações fiscais para com a comunidade.
Apenas discordo da tua nota de pessimismo final. Mas tu talvez já saibas disso. É um dever discordar.
Gostei muito da tua análise Gold.Elucidou-me muito!!
Concordo muito que é a consciência de comunidade que nos faz avançar!De facto cada vez me preocupo menos em protestar! nem sequer tenho muito tempo para isso... há tanta coisa para fazer...
A governação pelo medo não é exclusiva das ditaduras, apercebi-me olhando para as pessoas que "fazem" Portugal... O condutor só não atende o telemovel se vir um policia ao pé = medo da multa; paga impostos = medo das sanções; a criança porta-se bem = medo do "papão", chego a pensar se não haverá pessoas que vão a uma igreja apenas porque têm medo de ir para o inferno...
A nossa sociedade reflecte bem a diferença entre o medo e o respeito pelas "regras", como tu tão bem o soubeste descrever.[]
P.S. Acho, no entanto, que a capacidade de "definhar" do povo português nos fará aguentar mais anos do que pensas neste marasmo.
Ebola, não falava em "marasmo". Penso que a sociedade ocidental colapsará no seu todo, a breve prazo. 2020 é um optimismo meu :) Julgo que o Tiger mantém a sua confiança habitual na ciência/racionalidade... pois, talvez. Isso seria uma outra discussão interessante. Mas não pensava em epidemias ou coisas dessas. Julgo que o colapso será financeiro.
Sim não será um "marasmo" se falarmos a nivel financeiro, já que a situação piora a "olhos vistos" (expressão engraçada esta....). Eu empreguei o termo com a intenção de me referir à ausencia de crescimento, seja ele cultural ou económico, se bem que infelizmente estão os dois intimamente ligados.[]
Colapso financeiro. O que quererás dizer com isto Gold...? Ainda existem milhões de seres humanos que nascem, vivem e morrem em colapso financeiro. Até aqui!... No nosso país do pelotão da frente da moeda única.
Eu acho que o actual sistema financeiro mundial não passa de uma excrescência parasitária, que longe de ser um factor de dinamismo da economia é um factor de desagregação do mercado mundial.
Penso no entanto que esta coisa da pretensa "globalização", isto sim, tem os dias contados. Os povos europeus, por exemplo, não vão aceitar serem esmagados pelo rolo compressor das exportações chinesas e indianas. Creio que o neoproteccionismo é inevitável, com consequências benéficas para os sectores produtivos de todas as sociedades.Mesmo as asiáticas.
Por "colapso financeiro" quero dizer isso mesmo. O sistema económico (mais rigorosamente, o financeiro) é um ecossistema como qualquer outro. Frágil, pouco conhecido e sujeito a variações catastróficas. Penso que o governo americano tenta, de há uns anos para cá, o caminho estreito de conseguir um estado de guerra que assegure a "saúde" do sistema financeiro americano sem que a guerra se torne demasiado global. Assim, já a II Guerra teve para os americanos o mérito de pôr fim definitivo à Depressão de 29.
A evolução dos preços do petróleo é neste momento um relativamente fiável indicador.
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