3.9.05

Anita & Anoite

I.

Quando eu acordava do tamanho dela via do meu quarto a árvore grande das folhas de outono. Plátano, ensinou-me o avô. Quando eu andava do tamanho dela, quando em mim só havia este ser a Anita que ainda hoje comigo está. O mundo dançava baixinho, como se o vento e a chuva fossem meninos a brincar e os meninos todos se portassem bem. E por isso fiquei sempre a gostar do outono.



Depois não sei se cresci, se me foi crescendo a distância que ia de mim aos crescidos. Não sei se mudei se emudeci. Não dei pelo vento a passar. E quando Anoite me abraçou tive medo de andar perdido. Não havia coelhinhos para me iluminar.



Andei por lugares que não cabem nas histórias da Anita, vi coisas que nem Anoite sabe dizer. Dividi-me de mim, entre uma Anita assustada e uma Anoite a calar.

II

Tenho agora outro quarto, e da janela do quarto também vejo um plátano grande, mas não é a mesma coisa. O meu avô já não está. Não sei qual é a próxima história, não sei se vou ter o vento para brincar.

Envelheço, e às vezes fico triste quando vejo uma menina com ar muito sério, um rapazito a portar-se bem. Às vezes fico triste quando cai no caminho uma chuva pequena. Quando Anita e Anoite se buscam, cada uma sem saber que a outra vive tão perto.

Talvez um dia possa voltar ao mundo que dançava baixinho. Talvez um dia possa ser. Envelheço, e Anoite já não se cala, Anita pode sossegar. Talvez haja uma alegria diferente da alegria de não crescer. Talvez Anoite traga de volta o meu avô tão sábio. Talvez um dia eu seja duas pessoas inteiras, e a história possa ser só uma.



Ah, e deve ser divertido usar um laçarote azul. Tenho quase a certeza que a Anita vai ser feliz.

22 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Ih, a Anita. A minha masculinidade foi feita na refutação da Anita. Era o cúmulo da pieguice, do nhónhó, desprezava as Anitas da minha irmã com uma superioridade máscula. Devo muito à Anita.

4/9/05 23:51  
Anonymous Anónimo said...

Eu decorava os livros da Anita... e punha-me a falar como ela... e às vezes pensava que era ela... feliz!

5/9/05 08:35  
Blogger aquilária said...

e eu gostava mesmo era das "Aventuras dos Cinco" (de tal forma que não recordo nada do que li, antes disso); especialmente aquela em que eles entravam numa gruta e, na escuridão, havia muitos olhos a brilhar; todos apanhavam um grande susto (eu inclusive, independentemente do número de vezes que já tinha lido essa passagem e observado a respectiva gravura) até que descobriam que os olhos era pedras preciosas que faziam parte de estátuas que tinham sido roubadas por contrabandistas! e lia "Os Cavaleiros da Távola Redonda" e a BD do Conde Drácula, que surripiava ao meu irmão, oito anos mais velho; os livros do Júlio Verne, também, que eram do meu pai; e o meu pai, que tinha idade para ser meu avô, explicava-me que havia palavras que já não se escreviam assim, como estavam escritas naqueles livros: foi deste modo que eu aprendi que cada palavra, tal como cada pessoa, tem uma origem e um percurso (uma "história", dizia ele); e um dia ofereceram-me um livro cujo título era "O Cavaleiro da Mão de Prata". O fascínio que este livro exercia sobre mim (começando pelo título)era de tal ordem, que o levava comigo para todo o lado. Já adolescente, resolvi guardá-lo numa caixa e nunca mais o encontrei. E a verdade é que nem sequer lembro o nome do autor e reparo agora como isso é curioso...
Sim, Goldmundo, por vezes a Noite devolve-nos a Infância. E o gesto de dizer adeus a uma infância feliz assinala o início da morte.

5/9/05 12:42  
Blogger kanuthya said...

À custa de dois livros dela conseguiram levar-me ao dentista, a primera vez fora inútil, entre pontapés e rugidos por entre dentes de leite.

6/9/05 02:10  
Blogger Goldmundo said...

Toda a masculinidade é uma refutação.

6/9/05 03:03  
Blogger Goldmundo said...

"Os cinco na quinta Finniston" e a espada que o David levou consigo. E, sabes, ainda tenho comigo o Cavaleiro da Mão de Prata...

6/9/05 03:05  
Blogger Silvia said...

"Os cinco voltam à ilha" é que é! Aquela das pedras preciosas é "Os cinco na ilha dos murmúrios".

7/9/05 16:39  
Blogger Goldmundo said...

Bem me parecia que não eram os Contrabandistas :) Ah, mas os lanches... aqueles lanches :P

7/9/05 17:28  
Blogger aquilária said...

exacto, Sílvia! mas as imagens tinham sido roubadas e escondidas nas grutas por contrabandistas, ou já estou a misturar as histórias todas?
Goldmundo, foi tão estranho saber que tens contigo "o Cavaleiro da Mão de Prata"! talvez, um dia destes, o queira ter de novo...se isso acontecer, peço-te alguns elementos.
e é verdade, aqueles lanches!!...
?;-)

7/9/05 18:05  
Blogger aquilária said...

e há minutos, estava eu, precisamente, a dar o lanche aos meus gatos, quando pensei nesta nossa conversa sobre livros e que talvez me pudessem esclarecer, em relação ao seguinte: a filha de um colega meu anda a fazer um trabalho sobre cinema; viu o filme "O Nome da Rosa" e não percebe a razão de ser deste título. O pai pediu-me ajuda e eu lembro-me que o H. Eco dá, no final do livro, essa explicação. Tem a ver com o poder das palavras. Não me recordo exactamente (já li "O Nome da Rosa" há alguns anos e não o tenho comigo)é se ele se refere aos poder das palavras, em geral, ou ao poder da palavra "rosa". Já telefonei a alguns amigos e nenhum me esclareceu esta dúvida.

7/9/05 18:54  
Blogger aquilária said...

reparo que a minha última frase (já telefonei a alguns amigos....etc)no comentário anterior faz lembrar aquelas esclarecimentos que as pessoas pedem, em algumas revistas, aos entendidos em sexologia... também ficava bem a fechar um pedido de ajuda dirigido á pessoa responsavel por um qualquer "correio sentimental"...
looool

7/9/05 19:00  
Blogger Goldmundo said...

Acho que tambem nao tenho comigo a Rosa, mas vou saber isso. Tambem o li há muitos anos.

O livro do Cavaleiro é de uma colecção de livrinhos de capa dura, da Civilização. Havia imensos, os melhores eram para mim os das aventuras do Daniel Boone e do David Crockett :)

8/9/05 01:08  
Blogger aquilária said...

sim, também li esses!

8/9/05 10:14  
Blogger zazie said...

Pois eu devia saber mas não tenho a certeza... e fui à cata na net e não é que dou com este texto: http://www.criticanarede.com/lds_nomedarosa.html

O Desidério Murcho é um cretino! Estraga tudo com o ateísmo militante e depois acaba a dizer asneiras...

P.S.
e verdade: os contrabandistas estavam dentro da montanha por causa de outra coisa qualquer e tinham um gerador que fazia com que a montanha roncasse...

mas também não estou muito mais certa a não ser daqueles lanchinhos ";O)

8/9/05 13:30  
Blogger zazie said...

mas este ainda é mais anormal:

http://www.criticanarede.com/nomedarosa.html

8/9/05 13:32  
Blogger zazie said...

bem, é anormal por culpar os americanos mas tem razão quanto ao latim

8/9/05 13:34  
Blogger zazie said...

parece que era memso um expressão que significava o poder infinito das palavras
eu estava mais a pensar no sentido do fabliau Le Roman de la rose

8/9/05 13:54  
Blogger aquilária said...

obrigada, zazie!
a palavra "rosa" tem, efectivamente, muitos significados e foi a pensar em alguns que fiquei com a dúvida que expus; mas acho que o autor não estava a pensar no Roman de La Rose quando deu o título ao livro.
encontrei,hoje, um amigo que tem o livro em casa. estava de saída e com pressa, de forma que só logo à noite é que vou saber exactamente a razão de ser do título. Partilharei convosco, se por acaso vos interessar.

8/9/05 15:00  
Blogger Goldmundo said...

Bem, um Murcho a falar de rosas parece-me uma coisa triste.

De resto, "rosa" é, digamos, a "Floração do Verbo", esse que nas palavras do Evangelho de João "era, ao princípio". Daí o simbolismo da rosa associada à cruz, o cognome de Rosa Mística dado a Maria por S. Bernardo (pouco tempo antes do Roman de la Rose), a lenda de Isabel da Hungria e de sua neta Isabel de Aragão (a nossa) como as rainhas por quem o pão se trans-substancia no Verbo. Não sei o que haverá ainda por trás disso.

Os Cinco, a Rosa, o Gerador e o Murcho, o lanche dos gatos e os olhos a brilhar, o Cavaleiro da mão de prata e a dança dos índios em torno das cabanas de Daniel Boone. Gostava de escrever um romance assim.

8/9/05 16:44  
Blogger aquilária said...

"Um Lanche Russo na Montanha Roncante". Ora aí está!!!

8/9/05 17:14  
Blogger aquilária said...

Claro que, se fosse eu a tentar escrever o romance, resultaria o escrito, de certeza, num conto, com o título: "Ava-lanche".

8/9/05 17:23  
Blogger Goldmundo said...

Ava-lanche é um nome lindo. Faz lembrar "have a lunch" :P

Jemima. tenho quase a certeza de que era o nome da filha mais nova do Daniel Boone, a minha primeira namorada. Tinha uma boneca feita de maçarocas de milho, os índios roubaram-lhe o único par de sapatos (ela nao se importou muito) e ia buscar água ao poço enquanto os irmãos mais velhos ficavam de atalaia, de espingarda na mão. Eu dançaria com ela ainda hoje.

9/9/05 03:41  

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